“Estranha forma de democracia”
Talvez os leitores mais velhos ainda se lembrem do modo como a democracia funcionava antigamente: os cidadãos colocavam uma cruzinha nos candidatos que pretendiam eleger e os mais votados desempenhavam os cargos para os quais tinham sido eleitos. Parece-me que era isto. Entretanto, a democracia foi evoluindo e adquiriu a forma mais complexa e sofisticada que tem hoje: os cidadãos continuam a colocar uma cruzinha nos candidatos que pretendem eleger mas os mais votados tanto podem desempenhar os cargos para os quais foram eleitos (embora seja uma hipótese remota), como podem desempenhar outros cargos à sua escolha, como podem ainda optar por não desempenhar cargo nenhum.
O que o eleitor deposita na urna não é bem um voto, é uma carta de recomendação. Escrita por um analfabeto, uma vez que vai assinada por uma cruz. Mas, ainda assim, valiosa.
Esta variante da democracia produz resultados interessantes e imprevisíveis. O povo votou em António Guterres para primeiro-ministro e ele foi para casa.
Votou em Durão Barroso para primeiro-ministro e ele foi para presidente da Comissão Europeia. Votou em Sócrates para primeiro-ministro e ele foi para vice-ministro de Angela Merkel e agora é assessor do FMI. Nas próximas eleições, o povo pode votar em Fernando Nobre para deputado mas ele ainda não sabe bem se quer ser deputado. O povo que vote, e depois logo se vê se lhe apetece. Pelo meio, o povo não tinha votado em Santana Lopes para primeiro-ministro e ele acabou por ser primeiro-ministro o que constitui uma novidade muito agradável: é tão raro que os portugueses elejam, para primeiro-ministro, alguém que queira mesmo ser primeiro-ministro, que deve saudar-se a vontade de um homem que deseja ocupar o cargo mesmo que ninguém o tenha mandatado para isso.
Cada vez se torna mais claro que as criticas que se fazem normalmente à campanha eleitoral são injustas e provêm de gente que não percebe nada de politica. «Não há ideias para o país!», gritam uns, «Ninguém apresentas propostas concretas!», bradam outros, tomados de um ódio incompreensível às propostas abstratas.
«Não há sacos de plástico nem canetas!», lamenta aquela parte bastante vasta do eleitorado que aprecia a luta politica por causa dos brindes. Todos os críticos são pessoas simples e ingénuas. Os candidatos a cargos públicos não apresentam propostas mais claras porque, no momento da eleição, não sabem ainda que cargos vão desempenhar. Não admira que a democracia seja o melhor dos sistemas: o poder é exercido pelo povo, e o povo é talvez o único soberano que nunca abusa do seu poder. Mais depressa deixa que abusem dele.
«Revista Visão/Por: Ricardo Araújo Pereira»
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