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sexta-feira, 25 de março de 2011

Peças exclusivas com destino à Casa dos Patudos


Artista versátil, encetou um percurso muito próprio e poucas foram as artes que não experimentou. Foi um exímio ceramista e escultor, ilustrador e cartoonista, jornalista e repórter (da guerra civil espanhola), mas poucos o reconhecem como decorador e figurinista de teatro... Do carácter pioneiro que o caracterizou há que referir ainda a sua habilidade como marketeer e designer, funções que desempenhava quando ainda nem havia nomes para elas. É caso para perguntar o que é que ele não fez. É que até na gastronomia ele deu um ar da sua graça, inventando a receita Eiroses do mar à patriota. Qualquer semelhança com o primeiro verso do hino nacional não é pura coincidência, afinal de contas falamos de Raphael Bordallo-Pinheiro.
Em jeito de biografia…
Figura incontornável da última metade do século XIX, Raphael Bordallo-Pinheiro (1846-1905) tem na sua Lisboa natal um museu a ele dedicado. A homenagem partiu do poeta republicano Cruz Magalhães, admirador confesso da obra bordaliana. Passava pouco mais de uma década da morte de Bordallo-Pinheiro (1916) e Cruz Magalhães abria ao público o primeiro andar da sua moradia do Campo Grande - projecto do arquitecto Álvaro Machado e Menção Honrosa do Prémio Valmor em 1914 - expondo a sua modesta colecção gráfica.
Cruz Magalhães era amigo de Gustavo e Helena, filhos de Bordallo-Pinheiro que enriqueceram o acervo do museu com importantes doações. Com o passar dos anos, a mostra foi crescendo e ocupou outras salas da vivenda até que acabou por “despejar” o próprio dono que entretanto legou o museu ao município de Lisboa. A nova vida deste espaço começa em 1926, já com uma importante colecção de cerâmica e uma biblioteca (que disponibiliza os originais de alguns dos mais importantes periódicos) a ocuparem o rés-do-chão.
Actualmente o museu reúne uma colecção de 1200 peças em cerâmica, 3500 exemplares de gravura, 3000 originais de desenho e pintura, 900 fotografias de época e mais de 3000 publicações. E embora a obra seja extensa, o museu é relativamente pequeno… Querem Bordalo? Sigam-nos os passos.
De Lisboa para as Caldas
Sendo facto que na vida profissional de Raphael Bordallo-Pinheiro primeiro surgiu a caricatura e o jornalismo é, no entanto, com a cerâmica que se inicia a visita ao museu.
Destacada numa parede do piso térreo junto à entrada está uma fotobiografia sua. São muitas as caras que ele assume nas várias imagens e muito poucas se associam à figura robusta de bigode farto mais amplamente divulgada.
Na sala à direita um curto filme de 13 minutos fornece o contexto político e social do tempo de Bordallo-Pinheiro e na sala à esquerda começa o admirável mundo da produção da Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha fundada por Bordallo-Pinheiro em 1884 e da qual ele foi director técnico e artístico até à sua morte. Um projecto moderno para a época que aliou os progressos da tecnologia do ramo às tradições cerâmicas daquela localidade.
Se alguma peça lhe interessar decifre alguns dos segredos que Bordallo-Pinheiro lhes confiou nos quiosques multimédia que existem em cada sala e que complementam a informação. Aqui tanto pode encontrar produções em série - utilitárias ou mais decorativas - como trabalhos únicos e monumentais, caso da Talha Manuelina (1892), adquirida pelo rei D. Carlos, um exemplo do revivalismo do estilo manuelino e de referências a outras artes nacionais como a azulejaria e a ourivesaria.
Quando a fábrica começou com problemas financeiros, Bordallo-Pinheiro criou peças exclusivas de enormes dimensões que chegou a leiloar. Conta-se que a maior de todas tinha como destino a Casa dos Patudos, em Alpiarça, mas por ser tão grande acabou por ser rejeitada indo parar ao Brasil, numa operação que hoje chamaríamos de marketing.
Sem poupar no floreado, Bordallo-Pinheiro vai inspirar-se num registo naturalista aplicado tanto a um gosto mais depurado como ao mais popular, caso dos pratos natureza-morta, das bilhas, dos alcatruzes e das ceiras.
Descubra o génio do artista ao combinar tradição (em objectos da época como os paliteiros) com modernidade e humor, caso do escarrador com cabeça de agiota e do jornalismo a ser silenciado por uma gigante rolha de cortiça colocada a custo por minúsculo agente da autoridade. Esta última peça é um tinteiro.
É na montra dos tipos sociais que o visitante dá de caras com o famoso Zé Povinho (que nasceu como gravura nos jornais) e sua digna esposa, Maria da Paciência. Estas figuras revelam-se ainda mais cómicas se imaginarmos que com um pequeno toque interagem com a cabeça e o corpo.
Nesta vasta produção de autor preste atenção à minúcia das microesculturas presentes em algumas peças e ao facto de as suas personagens estarem entretidas em diálogos e flirts casuais. Ora espreite um centro de mesa renascentista onde o Tristão “faz olhinhos” à sereia. Será que ela vai em cantigas?
E o povo, pá?
Da cerâmica agora para as artes gráficas. Falamos de pintura, desenho, litografia e gravura, todas situadas no piso superior. Deixe-se entreter logo à chegada por um pequeno núcleo dedicado à auto-representação que chama a atenção para o humor e ironia de Bordallo-Pinheiro. Um aperitivo para o prato principal da visita, a sala do Zé Povinho, símbolo do povo português.
Conheça o seu primeiro desenho original a tinta-da-china publicado no 5º número da revista A Lanterna Mágica, em 1875. E divirta-se com outras representações menos conhecidas como a do Zé Júnior ou a do Manuel Trinta Botões, uma espécie de Zé Povinho emigrante, figura criada no Brasil, onde Bordallo-Pinheiro trabalhou.
Consciente da força da imprensa, Bordallo-Pinheiro - crítico irreverente - funda, dirige e colabora em diversos periódicos que a censura foi fechando. Aqui encontra exemplares de quase todas essas publicações. Nas gavetas que pode abrir e fechar a seu gosto estão os originais das gravuras que vê em cima, algumas delas já a cores.
Por ocasião do centenário da República, três salas albergam a exposição Bordalo Pinheiro e a República. O seu inconformismo levou-o a retratar grande parte dos acontecimentos da época, criticando e expondo ao ridículo determinadas situações. Um último apontamento pode ser encontrado no meio de uma das salas: o estirador onde o artista terá desenvolvido grande parte da sua obra. Para ver até inícios de 2012.
Uma sala multimédia disponibiliza ainda quatro computadores onde pode saber mais sobre a vida e obra do artista bem como da história do museu.
Mas se a sua curiosidade ainda não tiver sido saciada dirija-se à última sala a que chamaram Testemunhos. Aqui estão expostos objectos pessoais de Bordallo-Pinheiro como o monóculo, um colete preto bordado pela sua irmã Maria Augusta e duas medalhas da Legião de Honra dadas pelo governo francês pelo trabalho como decorador artístico do Pavilhão de Portugal na exposição mundial em Paris.
Sendo o espaço exíguo, foi construído nas traseiras da moradia um outro edifício onde fica a loja do museu e as exposições temporárias de artistas contemporâneos cuja obra está de alguma forma relacionada com a de Bordallo-Pinheiro. Para ver os trabalhos de cerâmica de António Vasconcelos Lapa que interagem com o visitante incentivando-os ao toque. Surpresa das surpresas, as suas peças produzem “música”.
No vizinho Museu da Cidade, também no Campo Grande, aproveite para visitar o Jardim Bordallo Pinheiro, um projecto de Joana Vasconcelos criado a partir de uma ideia de Catarina Portas. Há seres gigantes à solta. Vá lá tentar apanhá-los. A entrada é gratuita.
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