Mário Soares |
1. Para quem há mais de cinquenta anos, como eu, é um europeísta convicto, a situação de decadência anunciada da União Europeia, sem valores - incluindo os comunitários, como a unidade, a solidariedade e a igualdade de todos os Estados membros -, representa uma imensa tristeza. Para além da falta de uma resposta concertada e conjunta à crise financeira e económica, as "receitas" propostas que corroem alguns dos Estados membros e a manifesta paralisia em matéria político-diplomática.
Vem-me agora à memória, com alguma frequência, a célebre frase do grande Alexandre Herculano, quando, numa fase quase final da sua vida, comentava a situação portuguesa, aos seus amigos, exclamando: "Isto dá-me vontade de morrer...
Não é, obviamente, o meu caso, considerado optimista. Tento reagir, com realismo, como é meu dever, com a maior isenção e preocupado acima de tudo com o nosso país. Mas não é fácil, dado o clima de incerteza quanto ao futuro da União, a sobranceria do Governo alemão, que parece querer "germanizar" a Europa, e o facto de não haver comparação possível entre a generalidade dos grandes líderes europeus do passado e o egoísmo nacionalista dos de hoje.
A União Europeia - note-se - nesta fase é profundamente conservadora. Basta lembrar que entre os 27 Estados membros que a integram só três se reclamam do socialismo democrático ou da social-democracia e, mesmo assim, com poucas convicções.
Ora o mundo está em grandes transformações, em todos os continentes. É uma evidência. A Internet e os novos meios informáticos - como a "primavera árabe" está a demonstrar - põem nas mãos dos cidadãos instrumentos de comunicação que lhes permitem formas, quase imediatas, de intercâmbio de ideias e de actuação que, no passado, levavam anos ou meses a amadurecer.
O capitalismo especulativo, sem valores éticos - que a crise financeira revelou, no seu pior -, está desacreditado, como os mercados especulativos, que só pensam no lucro, ignoram a crise, as pessoas, e põem Estados muitas vezes seculares, como o português, em tremendas dificuldades.
A globalização é um fenómeno irreversível - é evidente - mas está cada vez mais desregulada, o que torna imprevisível o futuro. As desigualdades entre pessoas e entre os Estados têm vindo a agravar-se perigosamente. O neoliberalismo, como ideologia, revelou-se um fracasso colossal, como há duas décadas foi a queda do comunismo, suscitando a mesma surpresa geral.
As rupturas são, portanto, inevitáveis e irão com certeza surgir, de surpresa, quando menos se esperar, como tem estado agora a ocorrer no mundo árabo-muçulmano.
É incontestável que a União Europeia, vista antes como um projecto político-social, invejável, original, de paz e de bem-estar, para todos, está hoje à deriva e sem rumo. Os seus dirigentes actuais, esmagadoramente conservadores, estão a perder contacto com a realidade e as populações, numa espécie de autismo político, que conduz ao descrédito, numa primeira fase, e depois à revolta. Perigosa situação!
Os actuais dirigentes europeus, e, em especial, os alemães e os franceses, que os seguem, obedientemente, negam-se a compreender que as receitas economicistas que impõem a certos Estados membros, longe de lhes resolverem as dificuldades, as complicam, até porque os conduzem, necessariamente, à recessão: mais desemprego, mais precariedade do trabalho, menos investimentos, crescimento zero e, em vez de progresso, regressão...
No mundo actual, para haver crescimento, como Barack Obama disse, na sua posse (mas ainda não conseguiu impor, inteiramente), é necessário um novo paradigma. Isto é: um novo modelo de crescimento. Introduzir regras e valores no capitalismo, pondo as pessoas acima dos mercados e estes submetidos a princípios éticos, o que implica a abolição dos paraísos fiscais e da economia virtual. Numa palavra: a economia real submetida à política e não o contrário. Ora, a verdade é que os actuais dirigentes europeus se recusam a ver a realidade e prosseguem ignorando a própria crise e deixando impunes os seus responsáveis. A prazo, se não houver mudanças, esta situação vai tornar-se intolerável e vamos assistir, não tenho dúvidas, a grandes convulsões.
Portugal nesta Europa
2. Não somos, ao contrário do que alguns pensam e dizem, um país pequeno, sem recursos e condenado à decadência. Temos uma história gloriosa, com altos e baixos, é certo, mas que nos demonstra o contrário. Em alguns períodos não temos sabido governar-nos. É verdade. Mas é útil, para o futuro, aprender a distinguir o trigo do joio, os honestos dos pecadores e não nos deixarmos cair no derrotismo masoquista, em que alguns se comprazem. Criticar é fácil e protestar, mais ainda. É legítimo, aliás, em democracia, criticar e protestar, desde que o façam pacificamente. Mas agir, desinteressada e conscientemente, é melhor, desde que seja em função de uma alternativa, coerente, eficaz e estruturada, tendo uma visão do futuro, inserida num mundo em mudança. É o caminho para podermos sair do atoleiro em que nos encontramos.
É preciso informar completamente os portugueses da situação em que estamos, para os poder mobilizar. O que não tem sido feito suficientemente pelos responsáveis. O Presidente da República, no seu discurso de posse, insistiu neste ponto. Mas omitiu que a crise portuguesa actual foi causada e continua a ser, altamente influenciada, pela crise internacional e, em especial, pela europeia. Ora isso constituiu uma falha inaceitável, mesmo que não tenha sido voluntária.
O primeiro-ministro tem-se esforçado, na resolução da crise, com um zelo patriótico e uma energia pessoal absolutamente excepcionais. Mas cometeu erros graves: não tem informado, pedagogicamente, os portugueses, quanto às medidas tomadas e à situação real do País. Nos últimos dias, negociou o PEC IV sem informar o Presidente da República, o Parlamento e os Parceiros Sociais. Foram esquecimentos imperdoáveis ou actos inúteis, que irão custar-lhe caro. Avisou tão só o líder da Oposição, após a reunião de Bruxelas, pelo telefone. A resposta pública foi-lhe dada no discurso que Passos Coelho proferiu, em Viana do Castelo, muito didáctico, e foi negativa: "Não conte com o PSD para aceitar as novas medidas (negociadas/impostas?) pelos líderes da Zona Euro, reunidos no dia 11 de Março, em Bruxelas." Assim se abre, ao que parece, uma crise política, a juntar às outras que a precederam: financeira, económica (estamos a entrar em recessão), social, ambiental e de valores.
E agora? Ao invés do que parece, tudo ainda pode acontecer. Porque os Partidos da Oposição - todos - não querem ir para o Governo, nem assumir responsabilidades, numa situação que não é agradável para ninguém. O Presidente da República, perante o impasse criado, vai dissolver o Parlamento e provocar eleições? Para cairmos, no pior momento, numa campanha eleitoral, como a última presidencial, com as culpas atiradas uns aos outros, sem tratarmos dos problemas nacionais? E para quê? Para chegarmos, talvez, a resultados, mais ou menos, idênticos? Mas se o não fizer, deixa que o Governo - e o PS, o que é mais grave - fiquem a fritar em lume brando? Com que vantagem para o futuro?
As informações (poucas) que me chegaram da reunião de Bruxelas indicam que houve pela parte da União dos Estados da Zona Euro um pequeno passo em frente, incluindo, obviamente, a Senhora Merkel. Mesmo implicando as questões laborais, dadas as pressões dos Sindicatos europeus. Sócrates, entre os seus pares, foi dos que mais combateram quanto ao alargamento das competências do futuro Fundo Europeu. Foi importante e positivo. Mas tudo ficou em carteira, adiado, para debater ainda na próxima reunião dos dias 24 e 25 do corrente mês. Zapatero escreveu uma carta de aceitação prévia e, ao que me disseram - vale o que vale -, ficou bastante calado na reunião. Quando o que seria importante era que os dois Estados ibéricos exigissem uma política europeia convergente e falassem no mesmo sentido. Dar-lhes-ia, em termos europeus, uma importância redobrada. Temos connosco a Comunidade Ibero-Americana e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Não é pequena coisa, em termos europeus.
Veremos o que se passará nas duas próximas semanas, que serão decisivas para a União Europeia e, seguramente, também, para Portugal.
A geração à rasca
3. Entretanto, realizaram- -se em várias capitais de diferentes distritos, incluindo Lisboa e Porto, manifestações da chamada "geração à rasca", contra o desemprego e a precariedade do trabalho e, como se previa, contra o Governo, os políticos em geral, alguns conhecidos empresários, gestores públicos, juízes e promotores do Ministério Público... Conforme os gostos, as frutrações ou a raiva dos participantes interrogados, pelas televisões e as rádios.
Foram manifestações perfeitamente ordeiras que mostraram o desespero que se vive e em que participaram muitos milhares de pessoas de todas as idades. Curiosamente tantos idosos e gente de meia-idade, mulheres e homens, como jovens. Em certos momentos, com um ar de festa, a lembrar as manifestações espontâneas do 25 de Abril. Os jovens mais pobres - desempregados e imigrantes - dos arredores das grandes cidades, poucos participaram, estranhamente, em comparação com os jovens com cursos superiores, sem emprego, filhos em geral das classes médias, que disseram querer emigrar. Foi uma manifestação que merece um estudo sociológico aprofundado e isento. Mas que o Governo, nas dificuldades do presente, não pode nem deve menosprezar. É um sinal tremendo que deve ser tomado em conta. Tanto mais que, estrategicamente, os professores também se manifestaram, no mesmo dia; os condutores de veículos pesados entraram em greve no dia seguinte e por tempo indeterminado; e no dia 19, salvo erro, a Intersindical (CGTP/IN) tem convocada uma grande manifestação. Perante tais sinais os responsáveis não devem encolher os ombros, como habitualmente. São expressões múltiplas de um mal-estar social e político que está a levedar, vai intensificar-se, mas contém energias que podem ser úteis. Pode ser muito perigoso.
Compreendamos que não é só a juventude que está à rasca - a palavra pegou -, é o País, no seu conjunto, que está à rasca! Há que ter consciência da situação em que estamos - sobretudo o Governo, os Partidos e os movimentos cívicos democráticos - e agir, rapidamente, em conformidade. Antes que seja tarde.
«Diário de Noticias»
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