Obviamente que os vencimentos dos administradores da Fundação Cidade de Guimarães têm de ser reequacionados à luz dos vencimentos dos seus congéneres, mas sobretudo à luz da política de contenção que o País atravessa. Mas a primeira nota de preocupação vai para o descontrolo - neste caso em grande parte devido à omissão (não lhe chamemos sonegação, para não carregar o tom do discurso) de informação do Conselho Geral da Fundação, do Estado – legitimado pela ermissividade legal do regime jurídico que às mesmas assiste. As palavras da Ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, têm de ser contextualizadas neste quadro. Esta só terá tido conhecimento das quantias envolvidas quando preparava o orçamento. Não tenho dúvidas quanto às suas palavras, Canavilhas tem fama de ter pulso firme e creio que dificilmente anuiria a ter, no âmbito da sua tutela, administradores [da Fundação] que ganhem (até) mais do que ela própria (o presidente aufere 14 mil euros e os dois vogais, cada um, 12 mil euros).
Esta (grave) omissão do Conselho Geral da Fundação assenta fundamentalmente no facto de o Ministério da Cultura não participar da contribuição retributiva, pelo que tem todo o sentido defender um modelo das fundações em que haja uma partilha da responsabilidade [do Estado] com a sociedade civil (como é o caso da Fundação Serralves). Qualquer ente civil, independentemente da sua designação, que beneficie de fundos públicos deverá ser controlado, na devida proporção, pelo Estado. Estamos claramente aqui perante uma figura similar àquela que o direito comunitário designa por “organismo de direito público”, já assimilada pelo direito interno, designadamente, no Código dos Contratos Públicos, e adoptada para efeitos de validar a actuação inspectiva dos serviços inspectivos competentes, no caso a Inspecção-Geral das Actividades Culturais e a Inspecção-Geral de Finanças, e de auditoria, nomeadamente o Tribunal de Contas.
Atribuir dinheiros públicos e depois não os poder “perseguir”, perder-lhes o rasto, é um absurdo do ponto de vista do financiamento e da verificação da regularidade da aplicação dessas verbas. Sobretudo porque se está a sobrefinanciar numa área (a da cultura) em que a contenção de verbas assumiu o rosto de uma guilhotina para alguns dos nossos ex-libris nacionais, caso do Teatro Nacional S. João – que estava já antes desta “financeiramente doentíssimo” e que, ao que parece poderá ser objecto de uma operação de salvamento por um novo mecenas, a ANA -- Aeroportos de Portugal. Um caso dramático em que já não há dinheiro para a programação, nem para o funcionamento do dia a dia. Pelo que conheço, enquanto consultora e auditora na área, a integração deste teatro e do Nacional Dona Maria II na OPART (Organismo de Produção Artístico, E.P.E.), poderá ser o balão de oxigénio em falta.
Não propriamente na Cultura mas lá por perto urge deitar a mão à situação ofensiva verificada na RTP, com quadros a auferirem 15.000 euros por mês, “quase o dobro” do Presidente da República. O que levou já o ministro dos Assuntos Parlamentares a admitir que “não deve haver temas tabus” e que se deve reponderar “quais são os níveis justos e proporcionais dos vencimentos no sector público empresarial”. Alguns quadros da RTP ganham 15.000 euros/mês e há assessores e consultores que recebem 8.600 euros.
Em suma, deixam-se dois exemplos de aplicação dos dinheiros públicos – o da Fundação Cidade de Guimarães e do da RTP – que mereceriam uma atenção redobrada. O uso dos dinheiros públicos, independentemente das vestes de que se revista, deve ser repensado em toda a linha, desde o momento da sua atribuição até à justificação da sua aplicação. E só podemos ficar apreensivos quando se constata que uma parte significativa dessa aplicação se faz com a atribuição de vencimentos de quadros e de gestores que, tendo em conta os tempos difíceis que vivemos, literalmente, podemos qualificar de escandalosos.
São “faces ocultas” apadrinhadas pela Lei, reconhece-se. São vencimentos de “pleno direito”, sabe-se. Mas então que se alterem as leis, porque quando a lei é ela própria subversiva, torna-se premente fazê-la cair. Se, por um lado, se criam novas leis, quase diariamente, para espartilhar a vida dos que mais precisam, e, por outro, continuam vigentes leis velhas que legitimam a abundância e o desperdício dos mais beneficiados, o Estado corre o risco de ser visto como um cavaleiro do Apocalipse, com a particularidade de vestir de preto, para uns, e de dourado, para outros. Um anjo da desgraça para uns e um anjo da graça para outros.
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