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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

POLÍTICOS MENTIROSOS E A VERDADE DA MENTIRA

Por: Anabela Melão
Em 2004, experimentei o fel de alguns políticos mentirosos que me tinham nomeado para um cargo dirigente, e, confesso até que me surpreendi porque, sendo tão pequena na escala daquele mundo, lhes merecer tais "cuidados". Compreendi, a expensas próprias, que os políticos que pertencem à casta dos "mentirosos" se movem num submundo próprio, sem valores, e cujas regras são absolutamente desconhecidas pelos que não pertencem a essa "confraria" - que, nem por isso, são assim tantos - até porque têm um exército de seguidores e de "controladores" ao seu serviço, perfeitamente conscientes de que para chegar ao poder ou para manter o poder mentir é uma arma aceitável e legitimada por todos os que populam esse submundo. Aprendi uma inquestionável verdade: a mentira política é a mais perigosa.

Hannah Arendt dizia que a política é o lugar privilegiado da mentira, porque é considerada um utensílio necessário e legítimo para o político e para o homem de Estado. James Callaghan, primeiro-ministro britânico nos anos 70, dizia que a mentira dá à volta ao mundo enquanto a verdade ainda está a calçar as botas. A mentira política é um fenómeno complexo e leva-nos a uma reflexão (política) profunda, que sobressalta a República desde Platão até ao Nicolau Maquiavel com uma mesma questão: dever-se-á, para seu bem, esconder a verdade ao povo, enganá-lo com vista à sua salvação? (W. Krauss). Há até quem defenda que estamos perante uma novilíngua - em que a verdade é a mentira, para recuperar George Orwell.

Quem inventa uma mentira, sobretudo no mundo da política, devia saber que esta tem perna curta e pode vir a ser uma armadilha. Os agentes políticos relacionam-se com os media através de formas de marketing mais ou menos orquestradas, procurando diminuir a sua vulnerabilidade à sua influência, de acordo com a posição que ocupam. Um (actual ou futuro) líder político pode dar-se ao luxo de ventilar uma (boa) mentira a quem possua a vontade e os meios de a difundir para enterrar um nado-morto que ele próprio cuida de envenenar. Mas mentir é um dos mais graves erros da vida pública. É um erro e uma falha ética grave. E contém consequências sérias que deviam ser ponderadas. Até os alvos das mais cruéis mentiras têm amigos e estes dificilmente perdoam. Mais tarde ou mais cedo vem à tona a verdade da mentira e pode o feitiço voltar-se contra o feiticeiro. O que um político mentiroso pretende com a mentira é infligir um golpe mortal às relações de confiança e de suposta lealdade instituídas entre alguém de bem e sobre o qual nada havendo de negativo a dizer mais não lhe resta que inventar e dar azo à mais impiedosa mentira. É o que acontece muitas vezes na mentira-política. A mentira é uma facada no que devia ser um pacto de honra. E que destrói a relação de cumplicidade entre quem nomeia e o nomeado, quem elege e o eleito. Nas relações políticas, sobretudo nos cargos de confiança, não existem circunstâncias excluidoras de responsabilidade, intervalos de sanidade mental, episódios de amnésia, interdições por prodigalidade. Os nomeados e os eleitos não têm nomeadores ou eleitores cativos e a continuidade em funções pressupõe uma relação estável de confiança. As relações criadas entre ambos estão, pois, sujeitas a vicissitudes (como as mentiras), e são, muitas vezes, influenciadas de forma determinante ou pelas "rádios-corredor" ou pelos media, consoante a importância dos cargos em causa, como o maior contra-poder, capaz de fabricar factos e opiniões de um dia para o outro e de converter a maior das mentiras na mais pura verdade. A confiança subjacente a uma relação de nomeação ou de eleição, públicas ou políticas, não está, as demais das vezes, de tal forma enraizada no íntimo das partes que permita a sobrevivência da relação, pelo que esta é colocada em risco de cada vez que um paladino da mentira sai a palco com uma arquitectada mentira, cujo alvo é o despacho ou o voto. E a confiança precária que é intrínseca à relação política pode ser seriamente abalada pelo impacto de uma (boa) mentira. Por isso uma (boa) mentira pode destruir uma carreira. Principalmente uma carreira política e/ou uma carreira pública. Quem propaga uma mentira está empenhado em tudo, excepto em comprovar a sua veracidade ou em ouvir a vítima, preocupa-se mais em aguardar o despacho de exoneração ou a demissão. A única coisa que verdadeiramente interessa a quem mente é destruir o merecimento que conduziu à nomeação ou à eleição. Quando um político-mentiroso (e há-os compulsivos). empreende uma campanha de desinformação inicia um processo de comunicação destrutiva - é uma “comunicação interessada” em destruir o trabalho de uma vida, ameaçando com a "culpa in contrahendo" quem nomeou ou quem elegeu. Quem elege começa a olhar de uma outra forma o candidato a líder, a procurar descobrir atitudes, gestos e comportamentos comprometedores que sufraguem a mentira ouvida. Porque teme que a verdade o cegue. E deixa que a mentira o cegue. Porque a mentira é popular e normalmente credível. Há, no fundo, o medo de mantendo a confiança inicial no nomeado ou no votado se vir a ser acusado de partilhar com ele o facto da mentira. Pelo que resistir à mentira exige coragem. E sabe-se que os políticos não passam por provas de iniciação que testem a sua coragem. Pelo contrário, o sucesso de se chegar ao topo de uma carreira pode depender da qualidade e do grau de covardia, de subserviência, de passividade ou de omissão. A racionalidade e a capacidade crítica nem sempre contam porque a nomeação nem sempre partiu exclusivamente da vontade de quem nomeou e porque o voto é essencialmente emocional: ambos assentam numa relação de confiança que fica posta em causa, equivocada. Mesmo que o titular do cargo público ou político seja reputado de competente ou apresente um projecto credível, o nomeador e o eleitor depositam a sua confiança em quem não os questiona nem intimida, mesmo que não exista tão reputada competência ou projecto tão credível. Os momentos que antecedem a nomeação ou a eleição dependem de movimentações e campanhas que funcionam como uma oficina de informações positivas. E os momentos que levam à queda dos escolhidos com informações ou com contra-informações negativas. Estas informações negativas lançam profundas dúvidas sobre o carácter, a honestidade, a coerência e/ou a competência do nomeado ou do eleito. Mas nada é mais grave nem provoca mais estragos que uma mentira, independentemente da sua sustentação em factos e/ou documentos irrefutáveis - ao acusado raramente é dado o direito de se defender - até porque não é possível provar que não se fez, que não se disse, que não se pensou- e é depois da queda que, na maior parte dos casos, se conhece a mentira. E no cenário de opereta actual, com net, blogs e twitters, qualquer candidato a um lugar público ou político que se preze deve ponderar, paulatinamente, com rigor, o seu passado, antes de começar a sua carreira. Porque nem será muito difícil pegar num episódio da sua vida, porventura mais mal contado e muito bem aproveitado, para fazer de uma verdade uma grande mentira.

Claro que o tempo tudo revela e descobre, mas a ofensa fica e nem todos temos a possibilidade de reequacionar prioridades e afectos, enveredar por novas opções, e começar de novo. Quando, porém, isso se consegue, a lembrar Elis Regina "começar de novo e contar contigo, vai valer a pena ter sobrevivido". Por isso um conselho aos potenciais alvos de políticos mentirosos: façam como sugere Richard Rorty: “Cuidem da liberdade, que a verdade cuidará de si mesma”.

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