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Por: José João Pais |
Vamos hoje assinalar a passagem de mais um
aniversário da Batalha de La Lys, durante a 1ª Guerra Mundial. Foi um dos
maiores desastres das tropas portuguesas em combate. Muita gente de Alpiarça
ali esteve a combater. Muitos foram feridos, outros feitos prisioneiros, outros
morreram. Irei abordar o caso particular de Joaquim Magalhães, um dos
denominados “três mártires de Alpiarça”, juntamente com o 2º Sargento Joaquim
Monteiro Raposo e com João Nunes Feliciano. Todos morreram em França. Os dois
últimos ficaram sepultados em terras gaulesas no cemitério de Richebourg. O
corpo de Joaquim Magalhães nunca apareceu.
Vamos então tentar perceber o que aconteceu a
este bravo militar de Alpiarça, “começando pelo princípio” como se costuma
dizer.
Em Maio de 1917, mais precisamente no dia 3,
estava Joaquim Magalhães na sua casa, em Alpiarça, que ficava situada na então
Rua da Fusca, Outeiro do Carvalhal, onde vivia toda a sua família, quando lhe
aparece o Administrador do Concelho com uma carta do Comandante do 1º Batalhão
do Regimento de Infantaria nº 2, a convocá-lo para se apresentar naquele
Regimento, a fim de embarcar para França no dia 20 de Maio, integrado no 2º
Batalhão do 7º Regimento de Infantaria do Corpo Expedicionário Português.
Joaquim Magalhães já tinha recebido instrução
de guerra em Tancos, local onde ficou centralizada a base de instrução de todo
o corpo expedicionário que haveria de partir para França pelo que estava em
condições de embarcar.
O nosso homem lá se despediu dos seus pais, José Magalhães e Teresa Carvalho, bem
como dos 5 irmãos, Joaquina Carvalho, Lucinda Magalhães, Joaquim Carvalho,
Emília Carvalho e um outro irmão que haveria de morrer um pouco mais tarde
devido a uma apendicite aguda, depois do médico, segundo os familiares, lhe ter
receitado vinho tinto quente para debelar as dores que tinha, acabando por
morrer em Lisboa. Está sepultado no cemitério do Alto de São João, porque a
família não tinha dinheiro para pagar o funeral para Alpiarça.
Joaquim de Magalhães acabou por embarcar, não
a 20 como estava previsto, mas no dia 27, o que era uma situação normal nesta
altura, pelas dificuldades de comunicação e ainda porque um número muito
significativo de militares (soldados e oficiais), não compareciam,
propositadamente, na data de embarque, para evitarem a partida para a guerra,
como numa próxima oportunidade iremos constatar com o exemplo do que aconteceu
em Alpiarça.
Magalhães partiu, mas com o consolo de ir
acompanhado de muitos amigos e conhecidos da sua terra, entre os quais Joaquim
Monteiro Raposo, o que sobreviveu, que, tal como ele, pertenciam ao mesmo
Regimento e, por isso, partiram no mesmo barco inglês em direcção ao porto
francês de Brest.
Nesse mês chegaram a Brest 7 barcos ingleses
que colocaram em território francês cerca de 8.000 militares portugueses, entre
oficiais e praças de pré, o que fazia elevar para cerca de 35.000 o Corpo
Expedicionário Português a combater ao lado dos aliados. Era um esforço de
guerra muito pesado para o País, tanto no que se refere aos custos financeiro,
como também no que dizia respeito ao esforço humano, sobretudo porque se
retirava dos campos grande parte da sua mão-de-obra activa e se retirava,
também, às famílias, aqueles que eram, muitas vezes, o seu único sustentáculo.
Esta situação começa a ser objecto de grandes discussões, sobretudo no interior
do país, pelo que algumas Câmaras Municipais, onde se incluía a de Alpiarça,
fazem uma petição ao Governo, em Junho de 1917, “no sentido de serem
aproveitados, no serviço do Corpo Expedicionário à França, os vadios e
reincidentes com mais de 3 prisões, de preferência aos homens válidos que fazem
mais falta ao País”.
Entre os oito mil militares que chegaram
nesse dia 27 de Maio a França, além de Joaquim Magalhães, desembarcaram,
também, outros Alpiarcenses: Soldado 335 – António Nunes e 355 – Artur António
Rodrigues; Soldado 305 – Álvaro Vicente Alves, 597 – Francisco Maria Tiborno,
1º Cabo 548 – Manuel Augusto Campo, 2º Cabo 233 – António Miguel, Soldado 126 –
Vítor Miguel Coutinho, 295 – Francisco Valentim da Silva, 391 – José da Cruz
Perpétua, 602 – José Dias Lourenço, 606 – António Nunes, 275 – Celestino Nunes
Coutinho, 276 – Joaquim Monteiro
Raposo, 277 – António Costa
Melgada, 279 – Francisco António Meia-Via, 280 – João Luís Chapado, 295 –
Jerónimo da Silva Moita, 434 – Joaquim Francisco Atracado, 435 – Jerónimo da
Cruz, 254 – Vital Marques e 303 – Luís Francisco
O barco chegou a França no dia 30 de Maio e o
soldado nº 131, Joaquim Magalhães, que tinha a especialidade de metralhadoras,
ficou a pertencer ao 2º Batalhão da 6ª Brigada de Infantaria.
De Brest Joaquim Magalhães deve ter seguido
para o Campo Central de Instrução em Marthes, onde funcionava a Escola de
Metralhadoras Ligeiras, a sua especialidade, onde iria decorrer um período de
cerca de 3 meses de adaptação à guerra das trincheiras e treino específico para outras áreas, com
especial incidência para a defesa anti-gás, que havia decorrido de uma forma
incipiente em Tancos.
Foi um período de tempo que decorreu com toda
a normalidade, com excepção para uma “pequena distração” no cumprimento do
regulamento de disciplina militar. Na verdade no dia 25 de Agosto Joaquim
Magalhães faltou ao 2º tempo de instrução de metralhadoras sem apresentar
qualquer justificação para tal. No dia seguinte sai em Ordem de Serviço da
Unidade o castigo de 5 dias de detenção para punir o prevaricador.
Acabada a instrução, seguem-se as
trincheiras, essa “vida de toupeira”, entre ratos, piolhos, lama e a fome, que
esperavam os militares portugueses na frente de batalha da Flandres.
O tempo foi passando e começaram a aparecer
as saudades da família, conforme refere numa carta enviada a sua irmã Joaquina
“já à tanto tempo que não os vejo, mas ainda tenho fé de os ver e Deus queira
que seja mais breve do que eu penso”. Mantinha, apesar de tudo, a alegria
própria de um jovem “que não é por a gente andar tristes que escapamos”,
conforme refere na mesma carta, embora sabendo que os seus pais e irmãos também
passariam por momentos de angústia, pois, “que eu sei que há-de custar muito a
vocemessês chegarem a um Domingo e verem por aí andar alguns e não me verem a
mim”.
Joaquim Magalhães estava ciente dos perigos
por que passava, embora se sentisse com saúde e forças para ultrapassar todas
as dificuldades “só o que peço a Deus é que me dê saúde e sorte assim como tem
dado até à data, que é esse o meu maior desejo”. A incerteza do dia-a-dia, com
bombardeamentos constantes, levavam-no a momentos de grande abatimento
psicológico, não sabendo se o dia que passava era o último, mas logo “arribava”
e a seguir vinha-lhe a certeza de que “o que tem de ser é que é”.
Vamos então ler a carta que Joaquim Magalhães
escreve a sua irmã Joaquina no dia 13 de Outubro de 1917, que revela o
espírito, possivelmente idêntico à da maioria dos militares que “vegetava” nas
trincheiras da Flandres. É uma carta comovente, em que dá o último abraço e um
último beijo para a família amada, aquela que chega à Rua da Fusca, no Outeiro
do Carvalhal.
Minha Querida mana Joaquina
Em primeiro lugar desejo a tua saúde em
companhia do meu cunhado e meus sobrinhos e de toda a nossa família que a
minha, em companhia dos meus camaradas, por enquanto continua boa felizmente
graças a Deus.
Querida mana mandaste-me pedir um bilhete,
peço-te desculpa em não to mandar, mas mando-te esta carta não sei se tu
gostarás dela, era uma grande tristeza para mim se tu me mandavas pedir uma
coisa e eu não ta mandasse, só se de todo não houvesse, mas isso é o que cá há
com mais fartura Mana, agora o que pode ser é não ser o teu gosto, pois eu não
encontrei coisa mais bonita, mas as opiniões nunca são as mesmas, se eu
soubesse que tu fazias muito gosto em que eu te mandasse um, já te tinha
mandado à mais tempo, custasse o dinheiro que custasse, só eu me lembrar que
estou tão longe de vocemessês e já à tanto tempo que não os vejo, mas ainda
tenho fé de os ver e Deus queira que seja mais breve do que eu penso, para ver
se andam mais animadas, que eu sei que há-de custar muito a vocemessês chegarem
a um Domingo e verem por aí andar alguns e não me verem a mim. Só tenho pena é
da Emília e de vocemessês todos agora que estavam para gozar e não gozam nada
por minha causa, mas não se importem com isso que eu não me importo nada de
aqui estar, só o que peço a Deus é que me dê saúde e sorte assim como tem dado
até à data, que é esse o meu maior desejo e por isso não sismem e não se
apoquentem que eu tenho esperanças de lá ir se por acaso cá não fique, que não
é por a gente andar tristes que escapamos, isto é o que tem de ser é que é.
Ainda tenho fé que hei-de ir aos anos do teu Diamantino e das irmãs dele e
hei-de cá estudar umas rimas bonitas para lá dar para vocemessês se rirem e
mais eu nesse dia e que há-de acabar as tristezas todas que lá leva o Diabo e a
alma se é que a tem.
Mana Joaquina, tenho-te a participar que fui
entregue da caixa de papel que a mãe me mandou, fui entregue dela no dia 12 do
corrente, que eu até fiquei alheio em o papel ser para mim porque eu nunca
tinha mandado pedir nada disso, mas enfim, fiquei muitíssimo contente pela
lembrança que teve, porque foi uma coisa sem ser esperada. Agradeço-te muito a
sua lembrança, agora muitas saudades para os nossos pais e manos e saudades
para o meu cunhado e beijinhos para os meus sobrinhos e saudades para toda a
família e por quem por mim perguntar. Agora tu de mim recebe uma viva saudade e
um aperto de mão deste teu mano
Adeus, Joaquim Magalhães.
Querida mana, aqui ficam uns versos que fiz.
Vai-te carta, vai-te carta
És de todas a mais bonita
Vai visitar a minha mana
E da-lhe saudades de quem cá fica
Vai-te pavão engraçado
Que foste criado em França
Diz adeus à minha família
E de quem eu tenho lembrança
Vai tu pavão sozinho
Não te metas com mais ninguém
Adeus meus manos e manas
Adeus meu pai e minha mãe
Se encontrares tudo de saúde
Dá-lhe muitos parabéns
Dá-lhe também muitos abraços
Deste Joaquim Magalhães
Depois é o vazio de informações sobre
Joaquim Magalhães. O fim do ano de 1917 haveria de ser terrível. O Inverno foi
particularmente rigoroso, com temperaturas que chegaram aos 30 graus negativos.
Foram distribuídas “pelicas”, “safões” e capotes, mas a água, o gelo, a neve, e
temperaturas que chegavam aos 30 graus negativos, era coisa a que os militares
portugueses não estavam habituados, sobretudo, os do sul de Portugal. Aliado ao
clima agreste que se fazia sentir, havia ainda os bombardeamentos dos alemães
que matavam, feriam e decapitavam quem tinha o azar de estar no caminho errado.
Se isto já não era o suficiente, vinha depois o gás que sufocava, entorpecia,
queimava, arrasava os pulmões, diminuía as capacidades físicas e mentais.
Lesões que matavam logo ali, em agonia rápida ou lenta, mas que iriam durar o
resto da vida.
A partir desta altura, Joaquim Magalhães não
dá mais sinais de vida. É muito provável que uma granada de morteiro o tenha
encontrado no lugar e no momento errado. Bento Esteves Roma, um militar que
esteve em França, e que aparece citado no livro “das Trincheiras com Saudade”,
de Isabel Pestana Marques, refere que os morteiros pesados eram os que mais
danos provocavam abrindo crateras do tamanho de uma viatura. Segundo ele “os
morteiros desenterravam os mortos e enterravam os vivos.
Quando um morteiro caía e rebentava, abria
uma cratera enorme, deixando a descoberto esses restos já putrefactos, ao mesmo
tempo que escondia com a terra deslocada pela explosão os desgraçados que se
encontravam junto do seu ponto de queda. Quantas vezes, como sucede com o meu
batalhão, iam passando os dias sem nada a registar e, na própria madrugada da
rendição, aparecia um morteiro que produzia às cinco e mais baixas. Depois, lá
se andava procurando e recolhendo esses membros dispersos e ensanguentados, que
ainda há pouco tinham vida. E mesmo assim, quantas vezes os corpos desses
infelizes iam incompletos a enterrar” (1).
Quem sabe se os restos mortais do soldado
desconhecido não são os de Joaquim Magalhães. Quem sabe!
Com a falta de notícias do filho, Teresa de
Carvalho envia no dia 13 de Agosto de 1918 uma carta ao Comandante do Regimento
de Infantaria 2 a pedir informações sobre o seu paradeiro. O Comandante Joaquim
Patrão informa, que além do embarque para França a 27 de Maio de 1917, nada
mais sabe.
E assim contámos a história dramática de
Joaquim Magalhães
1 comentário:
Parabéns ao José João Pais por mais esta interessante passagem histórica da vida alpiarcense. Teremos certamente oportunidade de adquirir a obra compilada num futuro próximo, como é vontade do autor. Vamos aguardar.
Até lá, haja saúde e coza o forno.
M.C
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