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sábado, 23 de junho de 2012

O Carmo e a Trindade

Há algumas semanas, numa entrevista que ouvi na íntegra, o economista António Borges disse que alguns salários teriam de baixar em Portugal.
Caiu o Carmo e a Trindade.
Choveram críticas inflamadas, chamaram ao homem todos os nomes, foram perguntar ao Presidente da República se concordava com a afirmação e ao primeiro-ministro se ia segui-la, determinando uma redução dos salários.
Confesso que, por vezes, me sinto a viver num país de mentecaptos.
Pois não é evidente que muitos salários já baixaram, como os dos funcionários públicos, que não vão receber os subsídios de férias e de Natal?
Não é sabido que em muitas empresas já houve acordos para cortes de regalias, que se traduziram em perdas reais de salários?
Não é óbvio que, num país onde o desemprego atinge os 15%, os salários baixarão necessariamente mais tarde ou mais cedo?
Tal como sucede com o preço do leite ou das laranjas: quando há excedentes no mercado, o preço baixa.
Portanto, os salários em Portugal não baixarão porque o senhor António Borges quer, nem deixarão de baixar porque o senhor Cavaco Silva não quer.
Não é isso que regula os salários.
Há anos estive no Japão, na fábrica da Toyota.
E lá explicaram-me como eram calculados os salários dos trabalhadores.
Começavam por estabelecer um preço para cada modelo de carro, de modo a ser competitivo nos mercados europeu e norte-americano.
Depois calculavam o custo dos vários factores de produção, entre os quais o custo do trabalho.
E a partir daí definiam os salários.
À minha pergunta sobre se não havia reivindicações salariais, responderam-me: «Não há, porque todos sabemos que, se os salários subirem, o preço do carro também sobe e deixa de ser competitivo; e se os carros não se venderem, perdemos o emprego».
Os japoneses perceberam há muitos anos uma coisa que os portugueses (e muitos europeus) ainda não assimilaram: o mundo hoje é global.
Não adianta berrar, vociferar contra o neoliberalismo, insultar o dr. António Borges por ganhar muito dinheiro e ter o ‘desplante’ de propor uma diminuição dos salários.
A questão não é ideológica nem moral, e explica-se de um modo muito simples: ou aquilo que produzimos é competitivo, e tem sucesso no mercado, ou não é – e os produtos não se vendem, e as fábricas fecham.
E para o preço dos produtos ser competitivo, é necessário que os custos de produção se situem dentro de certos valores – tendo o custo do trabalho um peso relevante nesse bolo.
Dir-se-á que os salários não são, em muitos casos, aquilo que pesa mais.
Depende dos sectores: isso é verdade para uns, não é verdade para outros.
Mas uma coisa é indiscutível: numa decisão de investimento, nacional ou estrangeiro, o custo do trabalho conta.
Muitos portugueses pensam no país como era há 50 anos, quando não havia democracia, nem União Europeia, nem se falava em globalização.
Hoje não vivemos isolados.
Não podemos fazer aquilo que queremos.
A subida ou descida dos salários não depende da vontade do sr. A ou B – depende do mercado global.
Tudo o que produzimos tem de ser competitivo no mercado global – e todos os raciocínios que fizermos têm de ter isso em conta.
António Borges, quando falou da baixa de salários, não exprimiu uma opinião – limitou-se a fazer uma constatação.
Uma constatação que todos, facilmente, também podemos fazer: basta olharmos para o lado para vermos que os rendimentos mensais de muitos dos nossos amigos ou familiares realmente já baixaram.
E a tendência é para baixarem um pouco mais nos próximos tempos.
A realidade é esta, gostemos ou não gostemos dela.
O resto são fantasias.
P.S. – O bispo D. Januário Torgal Ferreira criticou recentemente, de forma directa, afirmações do primeiro-ministro. Ora, sendo um péssimo princípio a Igreja envolver-se na luta política (salvo situações excepcionais, como perseguições arbitrárias ou actos violentos praticados por regimes totalitários), justificar-se-ia uma palavra de demarcação da hierarquia católica – que não se ouviu. Se os bispos começarem a vestir a pele de comentadores políticos e a dizer o que lhes vem à cabeça, será muito bom para os sectores que se identifiquem com as suas opiniões, mas muito mau para a Igreja portuguesa.
 por José António Saraiva/Sol

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