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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Os avieiros estão de volta ao Tejo

São pescadores de água doce e inspiraram Alves Redol. Hoje, a crise ou a saudade fizeram os herdeiros regressar à beira-rio
Do centro de Santarém é um pulinho até à aldeia das Caneiras. Cinco quilómetros, que dantes se faziam a pé, em direcção ao rio. As casas azuis, construídas sobre estacas para fintar as cheias, soltam risos de crianças. São sete a morar na aldeia. "Com a crise, veio mais gente. Os que pescam são velhos, alguns reformados de outras profissões. Mas aparecem uns novos. Tem de ser", diz Ramiro, 51 anos, dono do restaurante local.
A braços com o desemprego e a nostalgia, os 240 filhos da terra recuperam casas, redes e bateiras para fazer da pesca da lampreia, sável e fataça o seu modo de vida. Imortalizados em livro por Alves Redol, os avieiros estão de volta ao Tejo.
BRAÇOS DE MULHER
O orgulho das mulheres surpreende quem chega à aldeia. São elas as mais entusiastas embaixadoras do quotidiano marginal, que passa de pais para filhos. A tradição tem vida larga, ali à beira Tejo.
Júlia Margarida Guerra, 83 anos de idade, há 13 que não pisa um barco, mas recusa arredar pé da terra que a viu nascer. "O que eu gosto disto... Já o meu pai me levava no barco, depois passei a ir com o meu marido, só que ele não se aguentou e desde que faleceu não tenho com quem ir pescar. Tenho umas saudades", lamenta.
Vestida de negro da cabeça aos pés, não se deixa esmorecer e vê o regresso de gente nova às Caneiras como uma bênção. "A aldeia esteve parada, o peixe faltou, agora está de volta e as pessoas também", conta, enquanto arregala os olhos para apreciar Zé Vicente Guerra a entrar no barco pintado de cores vivas. "Este era mecânico, a oficina fechou, mas ele não se enrascou. Gosta muito do Tejo e veio para aqui. É meu filho...", diz com vaidade.
Entusiasmada com o interesse que desperta, Júlia desfia a história da sua vida, que se confunde com as marés do rio. "O meu filho nasceu e com oito dias já ia comigo no barco (risos). Tínhamos uma cama muito boa e uma casota com um toldo onde nos abrigávamos quando chovia. Era tudo artesanal, a vara de salgueiro servia de arco para segurar o pano, levávamos a comida e fazíamos campanhas rio acima à procura do peixe. Íamos em grupo, era uma alegria, uma vida cheia. Trabalhávamos muito, passávamos a noite no barco e depois, de manhã, era carregar a cesta, para ir vender o peixe fresco à cidade".
Os cinco quilómetros que distam de Santarém parecem curtos a Júlia Guerra. "Não custava nada, ainda era capaz de ir...", brinca, ao mesmo tempo que simula os gestos de varina, um braço na anca e outro a segurar o cesto à cabeça: "Há peixe fresco".
CASAS DE ESTACAS
À porta da casa mais arranjada da aldeia, Lídia Mendes, 62 anos, sorri perante a curiosidade. "Sim, também sou pescadora, aqui uma pessoa tem que se sujeitar a tudo. E aprendi depois de velha, há oito anos. O meu marido era torneiro mecânico, vivíamos em Santarém e com a reforma decidimos voltar para aqui. É mais livre". Acérrima defensora da arte dos avieiros, Lídia partilha com os vizinhos o apego pelo rio.
"Ando nisto há mais de 50 anos, não me cansa", diz José Jerónimo Vieira, 76 anos ainda frescos. "É a necessidade que nos faz pescadores. Somos todos descendentes dos que vieram de Vieira de Leiria, nos anos 30, 40, para fugir à pobreza dos dias de mar bravo, em que não se podia ir à pesca. Mesmo com mau tempo vamos para o rio, aqui não há perigo. Nesta época há lampreia e sável, no Verão é a fataça. A pesca? Faz-se o dia todo e vai rendendo", garante.
ALDEIA DA PALHOTA
"Digam o que quiserem, a Palhota é terra amiga, foi aqui onde nasci", cantarola, entre sorrisos largos, Maria Carolina, uma das cinco pessoas que ainda pernoita nas antigas casas dos avieiros que inspiraram o autor neo-realista. O tempo parou naquela aldeia escondida, que evoca as memórias e os cheiros da infância. A imaginação corre solta ao passar em revista 69 anos de uma vida que amargou ao peso de muito trabalho.
Maria Carolina e o marido, José Vicente Lobo Tomás, nasceram com quatro meses de diferença, em casas vizinhas, e casaram ali na Palhota, "numa festa linda. Tivemos mais de 200 convidados, depois o rio subiu, invadiu tudo, tive de segurar a cauda do vestido branco e o noivo arregaçou as calças... A gente não tem medo do rio. Quando a água sobe, saímos de casa para o barco. Nem pomos o pé na terra".
De olhos na fachada do café Zé Broa, que era do seu pai, Maria Carolina aponta para o largo onde agora sobram salgueiros. "Era tudo povoado. Os velhos morreram, os filhos só vêm aos fins-de-semana, e estamos aqui só nós, o David, viúvo que já não pesca, e o professor e a mulher", explica sobre o casal Vasconcelos, de Lisboa, que adquiriu e recuperou parte da aldeia.
Enquanto faz de cicerone, mostra a Beira Tejo, a casa azul mais enfeitada. "Esta era da minha tia, foi onde esteve o Alves Redol. Eu não me lembro, mas contam que ele andou aqui uns tempos. Nunca li o livro... não aprendi a ler, é pena..."
A felicidade com que Maria Carolina descreve hoje a Palhota contrasta com a pobreza que ali grassava em 1970, quando a deixou. "Nem havia escola, aprendi a escrever o meu nome aos 22 anos e fomos embora. Emigrámos para o Luxemburgo e fizemos de tudo. Ele era carpinteiro, eu trabalhei nas limpezas, nos restaurantes, depois tirei a carta, aprendi a dizer ‘oui’ e fui chofer. Já estamos reformados e temos mais casas, no Forte da Casa e em Tavira, mas é aqui que me sinto bem".
À MODA DO TEJO
A vida faz-se agora entre a Palhota e o país onde deixou família. "Criei os meus três filhos no Luxemburgo, mas lá é sempre frio, estava fechada. Quando vinha cá, em Novembro, ia tomar banho no rio, tais eram as saudades".
Encostada à amurada da ponte que leva ao Tejo, Maria Carolina ajeita o cabelo e mostra o pijama azul por debaixo da camisola rosa, que aquece as madrugadas passadas no rio: "É a minha roupa à moda de andar no Tejo... Estive 40 anos sem pescar e agora só quero isto". O lucro também cativa: "Ontem vendi quatro lampreias. E há quem apanhe peixe miudinho – é proibido, mas vendem a 300 euros o quilo".
NO CENTENÁRIO DE ALVES REDOL
Expoente da cultura neo-realista e homem de esquerda, Alves Redol (1911-1969) descreveu em vasta obra literária a vida dura das gentes do Ribatejo. Nos anos 1940 instalou-se na Palhota e no livro ‘Os Avieiros’ denunciou a labuta dos pescadores, chamando-lhes "ciganos do rio", numa ode à vida nómada que os fazia percorrer, por vezes a pé, o caminho entre as praias de Vieira de Leiria e as aldeias à beira Tejo.
Este ano, quando se comemora o centenário do nascimento do autor, Vila Franca de Xira, a sua terra natal, propõe um vasto programa, com documentários, prémio literário e uma exposição itinerante. Ainda este mês arranca ‘Percursos de Redol’, uma série de viagens culturais às aldeias descritas pelo autor. Mais info. em cm-vfxira.pt.
http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/outros/domingo/os-avieiros-estao-de-volta-ao-tejo

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