Chegou ao conhecimento público através da comunicação social a existência de um Acordo bilateral que terá sido assinado entre o Governo Português e as autoridades dos Estados Unidos da América dando acolhimento à pretensão destas últimas de, em nome do combate ao terrorismo, ter acesso aos dados pessoais biométricos e biográficos que constam das bases de dados de identificação civil e criminal do Estado Português, bem como da base de dados nacional de perfis de ADN.
Ainda segundo a comunicação social, as negociações bilaterais entre os Estados Unidos e diversos Estados membros da União Europeia, como será o caso do Estado Português, tem sido o expediente encontrado pelos Estados Unidos para contornar dificuldades relacionadas com as objecções de vários Estados membros e das próprias instituições da União Europeia à cedência desse tipo de dados. Esta ideia é aliás corroborada por personalidades insuspeitas de qualquer anti-americanismo, como o Deputado Português ao Parlamento Europeu, Carlos Coelho.
Referem as notícias que o Governo Português aceitou a solicitação Norte-Americana em 2009, mas só em Novembro de 2010 solicitou parecer à CNPD sobre a matéria.
Estas notícias são muito preocupantes e não podem passar sem um sério juízo de censura à actuação do Governo Português.
Desde logo porque a matéria referente ao tratamento de dados pessoais tem, em Portugal, tutela constitucional expressa, que proíbe a interconexão não autorizada de ficheiros de dados pessoais e garante a sua protecção através de autoridade administrativa independente. Não se vê, portanto, como podem os dados em causa ser fornecidos a um Estado terceiro, indiscriminadamente, sem que haja uma flagrante violação de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.
Na verdade, a Constituição Portuguesa, no seu artigo 35.º, n.º 4, proíbe o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei. Esta proibição visa proteger os cidadãos contra o uso disfuncional dos seus dados pessoais para fins que os interessados não conhecem e perante os quais não têm qualquer possibilidade de intervenção. E qualquer excepção a esta proibição tem de respeitar o regime constitucional das restrições de direitos, liberdades e garantias. Ou seja, tem de ser previsto na lei, tem de se limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e não pode diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais. Nada disto é compatível com acesso de outros Estados a bases de dados pessoais de cidadãos nacionais.
Depois, causa enorme estranheza que, tendo sido esta matéria negociada em 2009 com as autoridades dos Estados Unidos da América, essa negociação tenha sido rodeada de secretismo e não tenha sido solicitado em tempo o parecer da CNPD.
Esta atitude não é aceitável. A protecção de dados pessoais é, nos termos constitucionais, assegurada por uma entidade administrativa independente, que no caso é a CNPD. Visa esta disposição constitucional subtrair à discricionariedade do poder político a tutela de uma questão sensível do ponto de vista dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Não poderia portanto o Governo assumir compromissos no plano internacional que tenham implicações em matéria de dados pessoais sem que haja qualquer possibilidade da CNPD se pronunciar, em tempo útil, sobre a matéria em causa.
Finalmente, sendo esta matéria da competência reservada da Assembleia da República, quer por se tratar de um Acordo Internacional quer por se tratar de matéria relativa a direitos, liberdades e garantias, é de estranhar e de lamentar que não tenha sido dada a este órgão de soberania qualquer informação acerca do processo negocial em curso.
É uma evidência que, a ser verdade que o Governo assumiu perante as autoridades dos EUA o compromisso de lhes facultar os dados constantes das bases de dados nacionais referentes à identificação civil, à identificação criminal e aos perfis de ADN, sem consulta à CNPD e sem qualquer acompanhamento parlamentar desse processo – e isso não é desmentido – estamos perante uma atitude inadmissível, de desrespeito do Governo para com princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático.
Ao actuar desta forma, o Governo, não só actuou de forma ilegítima, como actuou de má consciência. Não podendo ignorar a repúdio que tais compromissos para com um Estado estrangeiro, seja ele qual for, suscitariam – e que na verdade suscitam – da parte de todos os cidadãos com um mínimo de cultura democrática e de bom senso, o Governo preferiu agir em segredo e confrontar tudo e todos com uma situação de facto consumado.
Queremos por isso aqui afirmar com total clareza, que o PCP rejeita em absoluto qualquer possibilidade de cedência indiscriminada de dados pessoais dos cidadãos portugueses a autoridades de outro país, seja a que pretexto for. Uma coisa é a cooperação judiciária internacional, feita numa base de reciprocidade, no respeito pelas competências das autoridades judiciárias de cada Estado, pelas garantias dos cidadãos e pelos princípios do Estado de Direito Democrático. Essa é desejável e contará sempre com a nossa concordância.
Outra coisa é, em nome do combate ao terrorismo, ou seja em nome do que for, tornar o Estado Português numa filial do FBI e tratar todos os cidadãos portugueses como suspeitos de terrorismo, entregando-os à devassa discricionária das autoridades de um Estado que, nos últimos anos tem dado ao mundo os mais tristes exemplos de desrespeito pelo Direitos Humanos. Abu-Graib, Guantanamo, prisões em alto-mar, voos secretos e leis de excepção, estão aí, tristemente, para o demonstrar.
Impõe-se por isso que o Governo preste a esta Assembleia e ao país esclarecimentos cabais e rigorosos, sobre as posições que assumiu nas negociações bilaterais com os Estados Unidos quanto à cedência de dados pessoais dos cidadãos portugueses às autoridades desse país e faculte de imediato à Assembleia da República qualquer texto a que tenha dado o seu acordo.
Impõe-se também que o Governo explique por que razão não solicitou em tempo útil o Parecer da CNPD sobre esta matéria e por que razão nunca informou a Assembleia da República sobre essas negociações.E finalmente queremos deixar muito claro que o PCP considera que o Estado Português não deve ratificar qualquer acordo de cedência indiscriminada de dados pessoais dos cidadãos portugueses a outros Estados. Afirmamos por isso que, na Assembleia da República, o Grupo Parlamentar do PCP votará contra a aprovação de qualquer Acordo Internacional nesse sentido e, entendemos que, caso a Assembleia da República o aprove, constituirá um dever democrático indeclinável do Presidente da República, recusar a sua Ratificação.
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