Por: José João Pais |
Voltamos aos fragmentos da História de Alpiarça, agora que temos algumas disponibilidades de tempo. Recuemos, então 50 anos.
Em 1963 uma nova onda repressiva abate-se sobre Alpiarça. O medo e angustia instalam-se em muitos lares. A partir de Abril a PIDE ataca as figuras mais destacadas na política alpiarcense.
O primeiro a ser preso foi José Faustino Pinhão, a 3 de Abril. É libertado a 21 de Setembro. Segue-se António da Costa Raposo “o Facalhim” ou “Bicho-do-Mato”, que é detido a 19 de Agosto. José Cortimpau Raposo é preso a 21 de Agosto e libertado a 9 de Dezembro. Em 12 de Outubro de 1963 são presos, Angelino Cravina Agostinho “Angelino Lagarto”, que é solto a 7 de Dezembro; José Cavaca Calarrão, libertado a 9 de Dezembro; João Gaspar Mira, solto a 7 de Dezembro. Jacinto Ramiro Marvão e Ál varo Brasileiro são detidos também a 12 de Outubro, o primeiro às 7 horas e 30 minutos e o segundo às 10 e 30.
A 16 de Outubro, pelas 8 horas da manhã, seria preso Carlos Raposo Miguel Sardinheiro, que, tal como os outros, tinha sobre si a acusação de exercer actividades contra a segurança do Estado. Apesar de ser interrogado diversas vezes pelo temível Chefe de Brigada Sílvio Mortágua, não se chegou a provar a acusação, pelo que foi libertado a 9 de Dezembro. O seu processo foi arquivado até produção de melhor prova.
No dia 29 de Outubro, pelas 7 horas e 30 minutos, a GNR bate à porta do José Justino Machado, meia hora depois a paragem era em frente da casa de António Malaquias Abalada “o Borlota”. O último a seguir o caminho do Aljube foi Joaquim Matias Arraiolos, que é detido às 9 horas da manhã do dia 20 de Novembro.
Todos os que não têm data de libertação assinalada, veriam confirmadas as acusações que sobre si recaíam e vão a julgamento em Tribunal Plenário.
Estas movimentações repressivas por parte da PIDE, tinham como objectivo essencial destruir a organização política do Partido Comunista em Alpiarça, que acabou por ser seriamente atingida, principalmente com as prisões dos já mencionados António da Costa Raposo, Jacinto Marvão, Álvaro Brasileiro, José Justino Machado, António Malaquias Abalada e Joaquim Matias Arraiolos, que seriam integrados num só processo judicial (processo número 1667/63), que iremos desenvolver mais à frente.
Além destes, a PIDE pretendia ainda capturar António João Pereira Centeio, que se ausentou da sua residência ao ter conhecimento de que haviam sido assinaladas as suas actividades partidárias; tal como Francisco Presuncia Bonifácio “Xico Galiza” e Mário João da Graça Feliciano “Mário Balsa”. Este último não se apresentou no Regimento de Infantaria 5, onde deveria ser incorporado no serviço militar.
O motivo das detenções era o habitual: “actividades contra a segurança do Estado”.
Na origem desta investida da polícia política estiveram dois telefonemas recebidos no dia 16 de Agosto na sede da PIDE. O primeiro vinha do Regimento de Infantaria 2 de Abrantes e comunicava que nesse dia, pelas 22 horas, se evadira das cadeias do quartel o soldado João Carvalho Pereira, natural de Alpiarça, que se encontrava preso por ter sido considerado desertor. De facto, saíra ilegalmente do país no mês de Junho, quando soube que fora mobilizado para embarcar no dia 17 de Agosto para o Ultramar. João Carvalho Pereira tivera azar na sua fuga. Na sua passagem pelo país vizinho foi preso e entregue às autoridades portuguesas em Vilar Formoso, que por sua vez o entregaram no quartel de Abrantes. Fugira agora, de novo, do quartel em Abrantes.
O segundo telefonema recebido na Rua António Maria Cardoso, sede da PIDE, tinha origem no Posto da GNR de Alpiarça. Dizia que, durante as buscas para capturar o evadido atrás referido, haviam sido encontradas diversas cartas em casa de António da Costa Raposo, que lhe tinham sido enviadas pelo João Carvalho Pereira. Estas cartas continham matéria de natureza política. Ali, era citado um outro indivíduo, que era tratado como o “pequeno”. Era Jaime da Silva Gonçalves, também desertor do R.I.-2.
António da Costa Raposo é o primeiro detido por causa daqueles telefonemas, o que acontece no dia 19 de Agosto, como já mencionámos atrrás.
No seguimento das investigações, que são dirigidas pelo Chefe de Brigada Sílvio Mortágua, a PIDE atinge os outros elementos que referimos, causando um grave problema no seio do “organismo” local do PCP.
Álvaro Favas Brasileiro segue a caminho do Aljube onde fica incomunicável. A Polícia já o havia referenciado por actividades subversivas e que agora confirmava.
Com efeito Álvaro Brasileiro foi “aliciado” para realizar tarefas partidárias por António Batata Marto, por volta do ano de 1960, que lhe atribuiu o pseudónimo de “Brasa”. Quando António Marto foi preso, passou a depender de Josué Morais “o Pangaia”. Quando Pangaia passa á clandestinidade, é substituído nas suas “tarefas” políticas em Alpiarça por António Abalada “o Borlota”. Este fica com a incumbência de distribuir a imprensa clandestina – Avante e o Militante, pelos elementos que controla. Dado que se admitia que o pseudónimo de “Brasa” pudesse já ser conhecido da polícia, Álvaro Brasileiro passa então a usar o de “Ouro”.
Com as prisões de Novembro de 1961, que atingiram alguns dos elementos comunistas mais influentes em Alpiarça, António Abalada “o Borlota” é convidado para reorganizar “as forças”. Recorre prioritariamente a elementos “não queimados junto da PIDE” e a outros que são aliciados para o efeito. Ele próprio, que usa o pseudónimo de “David”, passa a controlar uma “célula de camponeses” de que faziam parte Álvaro Brasileiro “Ouro” e um outro com o pseudónimo de “Barroca”, que é Joaquim Matias Arraiolos.
A maioria dos detidos é “apenas” acusada de instigar a população à violência, distribuindo panfletos ou de fazerem inscrições nas paredes em datas comemorativas.
Na verdade, Jacinto Ramos Marvão, José Justino Machado e António da Costa Raposo, haviam espalhado pela vila diversos panfletos nas vésperas do 5 de Outubro de 1963 que lhes haviam sido entregues por António João Pereira Centeio. Nestes panfletos incitavam-se os trabalhadores a reunirem-se no dia 5 de Outubro, a fim de publicamente reclamarem aumentos de salários e protestarem contra a política seguida pelo governo da Nação. Aliás, estes homens já tinham atuado na noite do 1º de Maio deste mesmo ano, quando procederam à inscrição de várias frases nas paredes, como por exemplo “Avante pelo 1º de Maio” e “Liberdade”. Enquanto o Marvão e o Machado montavam vigilância, o Centeio escrevia nas paredes, munido de uma esponja embebida num líquido branco. Este liquido tinha uma característica muito especial. As letras não apareciam imediatamente legíveis, só se tornando visíveis algum tempo depois de serem escritas, o que era mais seguro, caso aparecesse alguma visita inesperada.
Jacinto Ramos Marvão “João”, José Justino Machado “Pinheiro” e António Costa Raposo “Gilberto”, formavam uma célula, cujo responsável era o António João Pereira Centeio “Luís”. Face às tarefas que executavam, estes indivíduos constituíam a “brigada de agitação”.
A programação destas actividades havia sido agendada numa reunião efectuada em casa de António João Pereira Centeio em fins de Abril à qual presidira Francisco Presúncia Bonifácio “Galiza”, que estava, então, na clandestinidade. Esta reunião teve como principal objectivo promover a intensificação das lutas partidárias em Alpiarça, que, no dizer de Xico Galiza, deveriam manter a exigência de aumentos salariais e do horário fixo de 8 horas de trabalho para todos os camponeses. Devia aproveitar-se o 1º de Maio e o 5 de Outubro para se reunir o povo e apresentar publicamente as reivindicações.
Seguindo as diretivas do PCP, no sentido da renovação e entrada de novos elementos. Assim, Jacinto Marvão “alicia” João Júlio Capitão, trabalhador rural, Joaquim Gargalo, pedreiro, ambos ainda bastante novos, pois teriam na altura cerca de 17 anos; é também convidado Manuel João Feijão, trabalhador rural na “Casa Meira”.
Com todas estas suspeitas a incidirem sobre si, é marcado o julgamento dos detidos para o dia 3 de Novembro de 1964, um ano depois de terem sido detidos.
Às 14 horas o juiz que preside ao julgamento, Desembargador Arelo Manso, declara aberta a audiência.
Por curiosidade vamos dar algumas notas sobre o que se passou no 1º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa.
Os advogados dos réus eram:
O Dr. Correia da Mota que defendia Álvaro Favas Brasileiro.
O Dr. Jorge Fagundes que defendia António da Costa Raposo
O Dr. Joaquim M. Matias era o defensor de Jacinto Ramiro Marvão
O Dr. Jorge Sá Borges que defendia António Abalada
O Dr. Jorge Sampaio que defendia José Justino Machado
O Dr. Jorge Santos era o defensor de Joaquim Matias Arraiolos.
Refira-se que os advogados eram todos novos em julgamentos dos plenários à excepção do Dr. Correia da Mota.
Houve algumas intervenções dos advogados que constituíram graves acusações à maneira como estes processos eram conduzidos pelo Tribunal e pela PIDE.
O advogado de Álvaro Brasileiro começou por falar na instrução preparatória, sobre a forma como eram conduzidos os processos da PIDE e que tinham como único objectivo incriminar os detidos. Referiu que na Polícia Judiciária “há magistrados a presidir à instrução preparatória, ao passo que na PIDE ela é presidida por Inspetores que exercem funções de Ministério Público, quando nada percebem de Direito. Assim, os processos dão entrada no Tribunal acompanhados de relatórios feitos pela própria Polícia, que o Ministério Público aceita de boa-fé, não tomando em conta que a Polícia quer unicamente acusar, não olhando a meios. As próprias testemunhas de acusação vão ao Tribunal satisfazer determinados interesses, pois que nem ao menos estiveram presentes, ao contrário do que afirmam sob juramento, durante os interrogatórios dos presos e durante a leitura dos autos”.
O Dr. Jorge Sampaio, por sua vez, focou o facto de não haver advogados presentes durante os interrogatórios dos presos. “Assim, na instrução preparatória havia um verdadeiro paradoxo. Qual a razão por que os réus geralmente não confessam no primeiro auto e o fazem nos seguintes?
Claro, o primeiro é para legalizar a captura e depois já haverá tempo para a Polícia pôr em prática os seus métodos”.
Factos dignos de nota, segundo o relatório do julgamento, é que quase todos os réus alegaram nas suas contestações que, na Polícia, foram espancados e obrigados a permanecerem muitas noites sem dormir.
No acórdão proferido refere-se que “todos negam o crime de que vêm acusados e que tenham sido membros do partido comunista português e alegam que as confissões constantes nos autos não são verdadeiras, tendo sido prestadas depois de sobre eles se haverem exercido violências”.
Finalmente são ditadas para a acta final as condenações a que ficaram sujeitos os réus:
António da Costa Raposo e Jacinto Ramiro Marvão “levam” 14 meses de prisão e suspensão dos direitos políticos por 5 anos, o primeiro dos quais sai logo em liberdade, por estar expiada a pena em virtude do tempo que esteve em prisão preventiva.
Para António Malaquias Abalada, que já era reincidente neste tipo de acusações, o juiz tem a mão mais pesada, já que lhe aplica 2 anos de prisão maior, suspensão dos direitos políticos por 15 e medidas de segurança de 6 meses a 3 anos prorrogável.
Álvaro Brasileiro, José Justino Machado e Joaquim Matias Arraiolos “sofrem” 17 meses de prisão e suspensão dos seus direitos políticos por 5.
Finalmente, refira-se que o Grupo Guildford da Amnistia Internacional enviou uma carta à Embaixada de Portugal em Londres solicitando informações acerca da prisão de Joaquim Matias Arraiolos. A Cruz Vermelha da Noruega transmite um pedido da Secção Norueguesa da Amnistia Internacional a pedir informações acerca da prisão de José Justino Machado e o Grupo Internacional da Irlanda do Norte dirige à Embaixada de Portugal em Dublin um pedido de informações acerca da prisão de António Malaquias Abalada.
Como tivemos oportunidade de verificar, os interrogatórios eram conduzidos pela PIDE e verifica-se, pela evolução dos autos e das respostas dadas pelos detidos, que “alguma coisa” se passava que os “obrigava” a falar e a assinar os referidos autos. O Dr. Jorge Sampaio confirma essa situação anormal em que decorriam os interrogatórios, que não tinham hipóteses de ser testemunhadas pelos advogados de defesa, pois não lhes era permitido assistir aos mesmos. O acórdão deste último julgamento diz textualmente que todos os presos “negam os crimes de que vêm acusados e alegam que as confissões constantes nos autos não são verdadeiras, tendo sido prestadas depois de sobre eles terem sido exercidas violências”.
Sobre as arbitrariedades a que os detidos eram sujeitos quando estavam presos e durante os interrogatórios, será interessante dar a conhecer um relatório escrito pelo Dr. Michel Bossut, médico Belga. Este médico esteve em Portugal em 1973, em representação da Liga Belga para a Defesa dos Direitos do Homem, para proceder a um inquérito sobre a situação dos presos políticos em Portugal, e de um modo muito em especial sobre a utilização dos métodos de tortura pela PIDE/DGS, o que vem confirmar o que lemos sobre os interrogatórios a que foram sujeitos os alpiarcenses atrás referidos. Com a leitura deste documento temos oportunidade de confirmar e reforçar essa versão.
Em 19 de Junho de 1973, o Dr. Bossut reuniu os jornalistas em Bruxelas para lhes apresentar o seu relatório, que na altura deu brado por essa Europa fora.
Eis pois um excerto da sua comunicação, que transcrevo integralmente em anexo no final do livro:
“Tortura do Sono – Tortura Psicológica
Passamos assim a descrever esta sucessão de choques psicológicos, cuidadosamente elaborados.
1-Prisão – É efectuada por agentes à paisana, que chegam ao domicílio do visado em viaturas sem qualquer sinal distintivo, ou que o detêm em plena rua. Na maior parte dos casos é-se ameaçado com um revólver ou é-se algemado.
Raramente são exibidos mandatos de captura ou de busca. Parece, aliás, que tais documentos podem ser assinados por um simples chefe de brigada da DGS. À detenção segue-se geralmente uma busca à casa do detido, que nem sempre é feita na sua presença. É indiscutível a desordem consequente à busca feita pela polícia política, que apreende livros, discos, posters, fotografias (de família designadamente), documentos íntimos e de carácter profissional. No que toca aos livros, a escolha é, em princípio selectiva e apenas visa obras de conteúdo político.
Depois da prisão vem a identificação: recolha de impressões digitais, fotografia de frente e de perfil, etc.
Em seguida é apresentado um documento com a pergunta “teve actividades subversivas?”, à qual é necessário responder, em sentido afirmativo ou negativo. Este documento legaliza a detenção, servindo para provar que a pessoa foi interrogada nas 48 horas a seguir à prisão.
2- A despersonalização. As primeiras medidas consistem em retirar ao preso todos os objectos pessoais, incluindo os óculos àqueles que os usam. São cortados os cabelos, a barba e o bigode. Retira-se ao preso tudo aquilo que pudesse servir para uma tentativa de suicídio.
3- O isolamento – O preso é conduzido a uma “cela de isolamento”, diferente da “cela de regime normal” porque uma parte daquela é ocupada por um bloco sanitário, constituído por lavatório, sanita e chuveiro. Assim o preso não terá motivos para sair da sua cela. A alimentação é-lhe trazida por um guarda com o qual está proibido de falar e que poisa a comida em frente da porta da cela, bate sem dizer palavra e espera que o preso a venha buscar para fechar a porta.
Não é permitido receber cartas, jornais ou livros.
…Entretanto para a maior parte deles, a policia escolheu um momento muito preciso para começar o interrogatório: aquele em que se encontravam no primeiro sono, cerca de uma ou duas horas depois de apagarem as luzes da cela.
4 – A tortura do sono. Tem início, pois, uma noite, quando o preso foi acordado em sobressalto. Conduzido ao reduto sul, a partir desse momento estará exclusivamente nas mãos de polícias à paisana…
Em breve voltaremos a outros Fragmentos da História de Alpiarça.
Bibliografia consultada, Pais, José João, “Gente de Outro Ver”, 2005.
4 comentários:
Mais uma vez o José João Marques Pais faz toda a diferença. Muito obrigado pelo teu trabalho de divulgador da História de Alpiarça.
O José João Pais é dos homens que mais tem contribuído para o desenvolvimento, história e diplomacia política em Alpiarça . Pena que o JA tenha ignorado o discurso que ele fez na apresentação da candidatura de Sonia Lázaro e da equipa da Junta de Freguesia. Um belo discurso sem duvida .
Sr. Pais com este governo voltaremos 50 anos atrás.
Comcordo com este anónimo das 15:59. Temos de derrobar o PSD
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