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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Falta coragem política para extinguir autarquias

A vontade das populações, associada à identidade das pessoas com o seu concelho ou a sua freguesia, é outro dos obstáculos que tem travado a reorganização do mapa administrativo português. Esta reforma poderia ajudar a reduzir a despesa com a administração pública.
Vozes de vários sectores da sociedade e de diversos quadrantes políticos têm vindo a público defender a necessidade de alterar o actual mapa administrativo do País, reconhecendo que há autarquias a mais. Mas a falta de coragem política e o receio de conflitos entre a população, devido à identidade das pessoas com o seu concelho e a sua freguesia, têm travado uma reforma que poderia ajudar a reduzir a despesa com a administração pública.
Num momento em que tanto se fala do peso da administração pública e da necessidade de reduzir despesas nesse sector, alguns especialistas têm vindo a público defender que uma das soluções poderia passar pela diminuição do número de freguesias e de concelhos. A ideia não é nova, mas tem esbarrado sempre na falta de coragem política para mexer no mapa administrativo português, que tem mais de um século e meio.
Em 2006, o governo socialista, através da Secretaria de Estado da Administração Local, chegou a anunciar uma ambiciosa reforma, que previa a fusão de freguesias de reduzida dimensão. No entanto, as alterações nunca avançaram e, há cerca de três meses, o secretário de Estado da Administração Local fez saber que a “extinção de municípios não está na ordem do dia”.
“Dificilmente o País resolve os seus problemas de consolidação orçamental sem mexer no seu mapa administrativo, que está completamente desajustado da realidade”, defende Augusto Mateus, coordenador de um estudo encomendado pela Câmara de Lisboa, que prevê a redução do número de freguesias do concelho de 53 para 29.
Em declarações, o ex-ministro da Economia considera que “Portugal terá muito a ganhar” com uma nova divisão administrativa, que “reconheça as mudanças” registadas nas últimas décadas e que “responda às alterações que se podem perspectivar para os próximos 30 ou 40 anos”. No seu entender, essa reorganização deve “acabar com o que é redundante, como os distritos, que existem apenas por motivos eleitorais”, e reduzir o número de freguesias e de concelhos, numa “lógica de eficiência, que permita usar melhor os recursos que temos” .
Segundo Augusto Mateus, o actual mapa administrativo faz com que haja, por exemplo, uma duplicação ou subaproveitamento de equipamento. “Cada concelho ou freguesia quer o seu pavilhão ou a sua piscina, mesmo que não tenha população suficiente para o rentabilizar. Isto não faz sentido num país com as dificuldades de Portugal”, afirma .
Também a geógrafa Fernanda Cravidão considera que “o País tem de começar a pensar em ajustar o mapa das freguesias e dos concelhos às alterações das dinâmicas demográficas e das estruturas de povoamento”, registadas ao longo dos anos. “Faz sentido manter freguesias que têm hoje menos 60 ou 70% da população que tinham há 30 ou 40 anos?”, questiona a professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Fusão permite "ganhar escala"
Nos últimos meses, ex-governantes, como Medina Carreira ou José Silva Lopes, e dirigentes de vários partidos vieram a público defender a necessidade de mexer no mapa autárquico. Em Junho, Almeida Santos, presidente do PS, em declarações ao Diário de Notícias, dizia que a extinção de municípios permitiria “uma poupança financeira brutal, que seria usada em favor dos cidadãos”, sendo secundado nessa opinião por Miguel Relvas, secretário-geral do PSD, que defendia que a reforma administrativa do País “é imperiosa”.
Ora, se há um certo consenso em torno da necessidade de mexer no mapa do País, por que é que a mudança não avança? Manuel Rodrigues Marques, presidente da Junta de Albergaria-dos-Doze (Pombal) que, no início deste ano, sugeriu a junção da sua freguesia com São Simão de Litém e Santiago de Litém, é peremptório: “Ninguém gosta de comprar guerras”.
O autarca, que preside também à concelhia do PSD de Pombal, lamenta a “falta coragem política para alterar um mapa completamente desactualizado, mesmo sabendo-se que a mudança melhoraria a qualidade de vida das populações”. Rodrigues Marques frisa que a fusão de freguesias de pequena dimensão permitiria às autarquias “ganhar escala, massa crítica e capacidade reivindicativa”.
O presidente da junta explica que a fusão daquelas três freguesias de Pombal, que já foram uma só mas que ao longo dos tempos se foram emancipando, facilitaria a rentabilização de meios humanos e equipamentos. “Nenhuma das freguesias tem um edifício da junta ou uma extensão de saúde com as condições adequadas. Por que não construir um único espaço, numa zona mais ou menos central, para servir melhor a população das três freguesias?”, questiona o social-democrata. Apesar de reconhecer que se trata de uma matéria de “difícil discussão”,Rui Silva, presidente da Câmara de Figueiró dos Vinhos, reconhece que a “regionalização e a mexida nas freguesias e nos concelhos é inevitável”. O autarca do PS defende que as autarquias “têm de ter capacidade de se juntar e de pensar a uma escala maior, com todos os ganhos económicos e de planeamento” que daí poderiam resultar.
Passos Manuel acabou com centenas de concelhos
O mapa administrativo de Portugal remota ao século XIX e é reflexo da reforma de Passos Manuel, que reduziu o número de concelhos de 817 para 351. O País tem actualmente 308 municípios, cinco dos quais com apenas uma freguesia (S. João da Madeira, Alpiarça, Barrancos, Porto Santo e São Brás de Alportel). O concelho com maior número de freguesias é Barcelos (89). O distrito de Leiria tem 148 freguesias, das quais 27 possuem menos de mil habitantes e cinco menos de 500, segundo os Censos de 2001, que constituem os dados mais recentes relativos à população residente por freguesia.
“Somos homens do chapéu na mão”
Portugal tem actualmente 4259 freguesias, um número que Natálio Reis, presidente da Junta de Fátima, considera “completamente exagerado, atendendo às poucas competências” atribuídas a essas autarquias, como “tratar dos fontanários públicos e dos caminhos rurais, pagar o papel higiénico das escolas e emitir atestados de residência”. “Isto não é digno para quem é eleito”, afirma o autarca, que lamenta que a situação transforme os presidentes das juntas “nos homens do chapéu na mão, a subir as escadas das câmaras a pedir esmolas”. É que, apesar de a lei prever que os municípios possam delegar competências nas juntas e transferir as respectivas verbas, essa possibilidade “fica ao critério das câmaras, que nem sempre o fazem”. Também Manuel Cruz, presidente da Junta de Cortes (Leiria), critica a “falta de autonomia” deste tipo de autarquias. “Recebemos, através do voto, a confiança das pessoas, que esperam que lhe resolvamos os problemas, mas depois não temos qualquer independência financeira”, diz. “Mais urgente do que a regionalização é ter coragem de mexer no mapa autárquico. Temos municípios e freguesias a mais”, defende Natálio Reis, que reconhece que “este não é o momento para criar novos concelhos”, nomeadamente o de Fátima.
Em Porto de Mós, a tentativa de fundir duas freguesias acabou em desacatos
Sentimento de pertença dificulta reforma
Além da falta de coragem política, a redefinição do mapa administrativo esbarra também em questões ligadas à identidade e à história das povoações. “As pessoas encaram o seu concelho e a sua freguesia, muitas vezes com centenas de anos, como algo quase imutável”, frisa Augusto Mateus, ex-ministro da Economia. A geógrafa Fernanda Cravidão também reconhece que o facto do assunto “mexer com o sentimento de pertença” das pessoas, torna-o “politicamente melindroso.
Por outro lado, “a perda de um concelho ou freguesia é encarada como uma diminuição de poder” e, como são estruturas “muito próximas das populações, estas reagem de forma bastante emotiva e geram-se conflitos”.
Foi precisamente em desacatos que terminou a tentativa de juntar as duas freguesias da sede de concelho de Porto de Mós (São João Baptista e São Pedro), levada a cabo há cerca de 20 anos. As duas juntas promoveram uma consulta à população, com resultados favoráveis à fusão. A proposta foi enviada à Assembleia Municipal, mas não passou daí, porque a discussão do assunto naquele órgão acabou em desacatos envolvendo membros do público. “Houve arremesso de cadeiras e vidros partidos. Foi necessária a intervenção da GNR”, recorda Gabriel Vala, à época presidente da Junta de São João. O caso acabou com participações ao Ministério Público, processos judiciais, dos quais resultaram algumas condenações ao pagamento de multas, e com a morte da ideia de junção das freguesias.
Vinte anos depois, Gabriel Vala continua convencido das vantagens da união, embora reconheça que os problemas que estiveram na origem da proposta, provocados pela confusão dos limites geográficos das duas freguesias, estão hoje “praticamente ultrapassados”, com a clarificação das fronteiras através dos serviços cadastrais e das regras do cartão do cidadão".
«Jornal de Leiria»