Por: Anabela Melão
Enquanto co-fundadora da Academia de Estudos Laicos e Republicanos, ao longo deste ano, sobretudo, em seminários e conferências, fui chamada a intervir para comentar factos ligados à história da República. A lei da separação da Igreja e do Estado é um dos temas mais recorrentes. Isto, a propósito da decisão de retirar os benefícios fiscais às minorias religiosas, mantendo os da Igreja Católica, que consta da proposta do Orçamento do Estado, que é, a meu ver, claramente inconstitucional.
Enquanto co-fundadora da Academia de Estudos Laicos e Republicanos, ao longo deste ano, sobretudo, em seminários e conferências, fui chamada a intervir para comentar factos ligados à história da República. A lei da separação da Igreja e do Estado é um dos temas mais recorrentes. Isto, a propósito da decisão de retirar os benefícios fiscais às minorias religiosas, mantendo os da Igreja Católica, que consta da proposta do Orçamento do Estado, que é, a meu ver, claramente inconstitucional.
A ser aprovado, fica revogado o alargamento dos benefícios concedidos à Igreja e às outras comunidades religiosas, decidido em 2001 no âmbito da Lei da Liberdade Religiosa, mas – vá-se lá compreender isto sendo o Estado português laico – mantém-se para os católicos. A título exemplificativo, a Igreja goza de isenção de IVA desde 1990. Em 2001, esta isenção foi alargada às outras religiões radicadas no País - aplicando o princípio constitucional da não discriminação religiosa. E o OE prevê, no artigo 127.º, a revogação dessa amplitude de direitos feita, repete-se, à luz de um princípio constitucional. Por isso a proposta não pode deixar de ser vista como um atentado ao princípio constitucional da não discriminação religiosa, e daí a sua inconstitucionalidade. A haver redução de benefícios, face à crise, ela deverá atingir de forma idêntica todas as formas de credo, sob pena de parecer revivermos o sindroma da perseguição fiscal às minorias religiosas. Para mais, a inconstitucionalidade decorre, ainda, porque a medida viola a "proibição de retrocesso social".
Os constitucionalistas, que até parecem unânimes nesta questão, aguardam que se corrija a falha, aquando do debate no Parlamento, defendendo inclusive que, caso esta não venha a ser expurgada, a própria constitucionalidade do OE fica posta em causa. Isto porque, a ser pedida uma fiscalização preventiva do documento pelo Presidente da República, Cavaco Silva, depois da aprovação da Assembleia, e o Tribunal Constitucional se pronuncie pela inconstitucionalidade da norma, poderia ser atrasada a entrada em vigor do OE. Ou, noutra eventualidade, depois da entrada em vigor do OE, ser requerer-se a fiscalização sucessiva da norma, pelo provedor de Justiça, deputados ou pelo Presidente, e, nesse caso, se o TC se declarar pela inconstitucionalidade do artigo, a decisão só afecta aquela norma.
Para além de estarem contra a norma os constitucionalistas, estão também contra ela os representantes das minorias religiosas, que a consideram “um recuo absurdo".
Como se não bastasse, a proposta do OE prevê ainda que as instituições de Solidariedade Social (IPSS) percam o direito de deduzir o IVA, o que suscitou já as mais adversas posições, havendo quem diga que a medida pode mesmo levar ao encerramento de várias organizações.
É caso para dizer que, compreendendo que a crise obriga a que se tomem medidas geradoras de receita, num Estado de Direito Democrático, essas medidas só podem ser aceites quando atinjam a universalidade dos destinatários e não quando promovam a discriminação positiva – ou, ainda pior, a selectividade – entre eles. Até porque sendo o Estado laico não deve e, mais longe até, não pode tomar uns por filhos e outros por enteados.