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terça-feira, 26 de outubro de 2010

E se o ridículo pagasse imposto?

Ainda eu não estava refeito do caricato vídeo da Ministra da Educação acerca do início do ano lectivo quando o dever me obrigou à leitura da Proposta de Lei n.º 40/XI que o Governo submete no dia 21 de Outubro de 2010 à apreciação da Assembleia da República e que faz parte do chamado Programa SIMPLEGIS, destinado alegadamente a “legislar melhor”.
Pois bem: no âmbito desse programa, o Governo propõe-se, entre outros dislates, revogar em 2010 pelo menos 300 diplomas que já não são aplicados “mas que permanecem formalmente em vigor”. E vai daí, a dita Proposta de Lei propõe a revogação expressa de nada menos que 430 diplomas que, reparem bem, “já não são aplicados nos dias de hoje, mas relativamente aos quais podem suscitar-se dúvidas quanto à sua vigência actual”.
Vejam então alguns exemplos de diplomas sobre os quais o Governo tem dúvidas quanto à sua vigência actual:
- Decreto-Lei n.º 209/75, que alterou o Código do Imposto Profissional;
- Decreto-Lei n.º 233-A/75, que abriu um crédito de 40.000 contos na Presidência do Conselho de Ministros;
- Decreto-Lei n.º 263/75, que regulou o imposto extraordinário para defesa e valorização do Ultramar;
- Decreto-Lei n.º 651-A/75, que criou o cargo de Sub-secretário de Estado dos Seguros;
- Decreto-Lei n.º 713/75, que estabeleceu novas taxas e preços para o tabaco;
- Decreto-Lei n.º 738-B/75, que aplicou medidas aos agentes dos serviços públicos civis de Timor;
- Decreto-Lei n.º 19/75, relativo ao abono de família de militares no Ultramar;
- Decreto-Lei n.º 18/75, sobre regras de flexibilidade da estrutura militar da descolonização;
- Decreto-Lei n.º 147-C/75, relativo ao saneamento de militares que não sejam fiéis ao Programa do Movimento das Forças Armadas;
- Decreto-Lei n.º 309-A/75, que extinguiu o 2.º Tribunal Militar Territorial de Angola;
- Decreto-Lei n.º 499/75, que extinguiu o Comando da Defesa Marítima de S. Tomé;
- Decreto-Lei n.º 125/75, que extinguiu o Conselho Ultramarino e o Conselho Superior Judiciário do Ultramar;
- Decreto-Lei n.º 272/75, que determinou a reabertura de processos em que ex-membros da Legião Portuguesa tenham alegado legítima defesa;
- Decreto-Lei n.º 315/75, que alterou a composição da Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau;
- Decreto-Lei n.º 407-B/75, que declarou indisponível e submetida a controlo estadual toda a produção de cortiça extraída ou a extrair na campanha de 1975;
- Decreto-Lei n.º 143/75, sobre a situação dos funcionários em funções em Moçambique sob licença;
- Decreto-Lei n.º 169/75, que criou o Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais;
- Decreto-Lei n.º 698/75, que extinguiu a Obra das Mães pela Educação Nacional;
- Decreto-Lei n.º 4/75, que previa inelegibilidades no processo eleitoral da Assembleia Constituinte;
- Decreto-Lei n.º 39/75, que extinguiu as secretarias gerais da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa;
- Decreto-Lei n.º 73-A/75, relativo à lei eleitoral para os territórios ultramarinos;
- Decreto-Lei n.º 93-C/75, que previa os elementos para instruir a candidatura à Assembleia Constituinte;
- Decreto-Lei n.º 129-A/75, relativo aos serviços executivos da Junta de Salvação Nacional;
- Decreto-Lei n.º 147-A/75, com regras sobre as listas do CDS e do PDC à Assembleia Constituinte;
- Decreto-Lei n.º 184-A/75, que definiu a composição da Assembleia do MFA;
- Decreto-Lei n.º 276-C/75, que transferiu para o Governo de Transição de Moçambique o Gabinete do Plano do Zambeze;
- Decreto-Lei n.º 329-C/75, que demitiu da corporação dos Oficiais da Armada o Almirante Américo Tomás;
- Decreto-Lei n.º 425/75, que criou o Tribunal Militar Revolucionário;
- Decreto-Lei n.º 444-a/75, que criou a Secretaria de Estado para a Cooperação Económica com os Países Socialistas;
- Decreto-Lei n.º 602/75, que transferiu para o Estado de Angola o Gabinete do Cunene.
E estas são apenas algumas pérolas extraídas da vastidão de 430 diplomas de idêntico quilate, sobre os quais o Governo tem dúvidas quanto à sua vigência e propõe que a Assembleia da República expressamente os revogue.
Entendo que a gravidade da Proposta de Orçamento do Estado com que estamos confrontados não nos permita dar atenção a questões menores, mas o que é facto é que esta Proposta de Lei caricata, completamente absurda de um ponto de vista técnico-jurídico e destituída do mais elementar bom senso, foi apresentada pelo Governo para apreciação da Assembleia da República, sujeitando-a a um processo legislativo ridículo.
Se o ridículo pagasse imposto, estávamos perante uma excelente contribuição governamental para o equilíbrio das contas públicas.
Por: António Filipe (Deputado do PCP na Assembleia da República e colaborador deste jornal)