Os rendeiros da Gouxa e Atela- 1941. Uma vitória do Dr. Castelão de Almeida
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Por: José João Pais |
Fragmentos da História de Alpiarça
Os rendeiros da Gouxa e Atela- 1941. Uma vitória do Dr. Castelão de Almeida
Na década de 40, enquanto nos campos do Ribatejo se desenrolavam acções
de natureza reivindicativa, em Alpiarça, uma outra luta ganhava
contornos violentos. Os actores principais eram também gente do campo,
neste caso, pequenos rendeiros. Estamos a falar dos rendeiros da Herdade
da Gouxa e Atela, que abrangia áreas do concelho de Alpiarça e
Almeirim. De facto, foi em 1944 que se resolveu judicialmente o conflito
que opunha os rendeiros ao dono da Herdade. O processo agitou o
concelho de Alpiarça, atingindo particularmente a população da Charneca
do Frade, hoje Frade de Cima.
Os problemas começam quando em 3 de
Julho de 1941 os Condes de Santar vendem a Quinta da Gouxa e Atela à
Sociedade Agrícola da Gouxa e Atela, Lda., com sede em Lisboa, cujo
sócio principal era Isidoro Maria de Oliveira. Esta sociedade procura
passar a propriedade para o regime florestal. Consegue-o em 3 de Agosto
de 1942, com a publicação de um decreto, nesse dia, no Diário do
Governo. Este despacho inviabiliza a exploração normal das propriedades
pelos seus 900 arrendatários.
A passagem ao regime florestal
equivalia à morte da exploração agrícola. De facto, como se pode ler no
jornal O Século “os rendeiros não poderiam a partir daí cortar lenha dos
pinheiros ou outra árvores que tinham semeado ou plantado. Não podiam
queimar, dentro das suas terras de arrendamento, mato ou cêpas que ali
colhiam, nem destruir os coelhos que lhe roíam as vinhas e as aves
indígenas que prejudicavam as suas hortas, milheirais e searas; e ainda,
sob o risco de pesadas multas, não podiam colher os produtos das suas
culturas, nem amanhar as terras desde o pôr ao nascer do sol, nem dentro
de igual período, transportar os produtos colhidos de dia, deixando-os
no campo com todos os riscos de estrago e furto”.
Era a morte
anunciada para quem cultivava a terra. O desespero apodera-se das
famílias que viviam apenas daquele pedacinho de terra arrendado. Os
rendeiros, cientes de que a razão estava do seu lado, põem o caso em
Tribunal, elegendo como seu defensor o Dr. Castelão de Almeida, um
advogado de Alpiarça.
A primeira medida que tomam, é enviar no dia
19 de Setembro de 1942 uma petição, assinada pelos rendeiros, ao
Presidente do Conselho de Ministros, Dr. António de Oliveira Salazar,
bem como ao Presidente da Republica, General Carmona, ao Ministro da
Economia e ao Cardeal Patriarca, Manuel Gonçalves Cerejeira, cujo teor
tem todo o interesse em ser conhecido, porque resume a luta que então se
travava.
“Por decreto de 3 de Agosto do corrente ano, publicado no
Diário do Governo nº 179, II série, foi submetido ao regime florestal a
propriedade denominada Quinta da Gouxa e Atela, situada na freguesia e
concelho de Alpiarça, distrito de Santarém.
A imediata execução
daquele decreto, que foi marcada a partir de 3 de Outubro próximo, vem
afectar e prejudicar gravemente a vida de 900 agricultores e cerca de
4.000 pessoas, que de há 60 anos para cá, em trabalho fecundo e
redentor, têm vindo arroteando grande parte das charnecas daquelas
Quintas, então denominadas “D`Africas”, que o saudoso Conde de
Magalhães, ao tempo seu proprietário, lhes deu de arrendamento a longo
prazo, o os seus descendentes, senhores Condes de Santar, sempre
mantiveram até 3 de Julho do ano findo, data em que venderam as
referidas Quintas à Sociedade Agrícola da Gouxa e Atela, Lda., com sede
em Lisboa.
Têm os peticionários fundados motivos para supor que o
pedido de concessão do regime florestal para as Quintas da Gouxa e
Atela, solicitado pela sua actual proprietária, foi feito com o
deliberado propósito de criar aos rendeiros peticionantes, tais e tão
grandes dificuldades que os obriguem a desistir do arrendamento…
Mas
os peticionários, ao tomarem do Senhor Conde de Magalhães o
arrendamento de vários talhos da charneca para arrotear, receberam
também autorização para os plantar de pinhais e vinhas, de oliveiras,
figueiras e outras árvores frutíferas e de, até nos mesmos talhos,
construírem prédios para seu agasalho e guarida.
E foi assim, Ex.ª,
que as terras de mato das Quintas da Gouxa e Atela se transformaram,
volvido pouco mais de um decénio, em lindos hortos e ridentes casais, em
vergéis ricos e fecundantes, onde anualmente se colhem, em benefício da
economia dos peticionários, é certo, mas por reflexo, da própria nação,
alguns milhares de pipas de vinho, muitos milhares de litros de azeite,
centenas de moios de trigo, milho e arroz, considerável quantidade de
legumes e frutas e toneladas de lenha e carvão, para satisfação das suas
necessidades domésticas e para aquecer-lhes o corpo nas duras e longas
noites de Inverno. A charneca, escaldante e improdutiva, vem sendo assim
valorizada de há 60 anos para cá, pelo trabalho constante dos
peticionários, dos seus pais e avós que, com a ajuda de Deus, tem
arrancado à terra, outrora estéril, fartura, para si e suas famílias,
abundância para o país e riqueza para a Nação.
Podem os
peticionários continuar agricultando, como até aqui, os talhos de terra
que trazem de arrendamento pelo preço de mais de 100 contos anuais,
dentro de uma propriedade submetida ao regime florestal? É evidente que
não.
Senhor Presidente do Conselho
São os peticionários homens
da charneca, a maior parte deles analfabetos, ignorantes do que vai por
esse mundo de Cristo, e mesmo até dos mais importantes que diariamente
ocorrem em Portugal. Contudo, sabem que V. Ex.ª é o Chefe do Governo da
Nação, que dia e noite vela pela tranquilidade do país para maior
destino da Grei.
Sabem, Ex.ª, que se há trabalho em Portugal, se há
pão para todos e paz bendita nos lares, é porque V.Exª todas as
dificuldades remove…
V.Exª um dia proclamou que era necessário que o
rico fosse menos rico para que o pobre fosse menos pobre. A Sociedade
Agrícola da Gouxa e Atela não fica menos rica contudo, se, mantendo os
arrendamentos existentes na décima parte das suas charnecas e pelos
quais pagam mais de 100 contos anuais, desistir da incorporação que para
eles requereu, no regime florestal. Em contraposição, Ex.ª, os
peticionários sendo mantidos nos hortos e casais que vêm explorando há
mais de 60 anos, nos vergéis que à força de incessante trabalho e
inúmeros sacrifícios tornaram ricos e fecundantes nas charnecas onde a
maior parte deles nasceram, constituíram família e querem morrer,
continuarão sempre satisfeitos e contentes, a mourejar de sol a sol em
seu benefício e da Nação, a viver tranquilos na doce Paz Cristã, que
desfrutam e, embora pobres, menos pobres.
Eis, Ex.ª, o humilde apelo
que os peticionários fazem em representação de 4.000 pessoas, que,
saudando-vos, respeitosamente concluem.
A Bem da Nação
Alpiarça 19 de Setembro de 1942”
Seguem-se algumas dezenas de assinaturas iniciadas por: Custódio Francisco, Manuel Simões Capador, Manuel João Caniço, e finalizadas por Manuel Miguel Sardinheiro.
Esta petição não alterou os acontecimentos. Por isso, os rendeiros
mantêm-se firmes nos seus propósitos e continuam a sensibilizar as
autoridades locais, regionais e nacionais para o seu problema. Mas os
novos proprietários avançam para a alteração do regime de propriedade,
que estava legalmente atribuída, e já publicada em Diário do Governo,
mandando colocar as respectivas indicações nos limites da propriedade.
Era inevitável a oposição dos ocupantes. Assim, quando vieram pôr as
tabuletas a indicar a zona florestal, os rendeiros, de armas na mão,
arrancaram-nas todas. Para tentar pôr alguma ordem nesta autêntica
sublevação popular, foi chamada a Guarda Republicana, que chegou aos
campos da Gouxa sob o comando do Tenente Luís Ferreira. Os rendeiros não
recuam. Querem permanecer nas terras dentro dos moldes anteriores. O
confronto tornou-se inevitável. Mais de 40 pessoas ficaram feridas, 6
das quais em estado grave. Foi morto um homem, uma mulher e uma criança.
No final a GNR prendeu 50 rendeiros, mas não os conseguiu expulsar das
terras. Mantiveram a acção em tribunal pois acreditavam que a justiça,
mais tarde ou mais cedo, lhes daria razão. Mas resolvem continuar a
desenvolver diligências junto do governo.
De facto, a 26 de Julho de
1944 os rendeiros recorrem ao Ministro do Interior, Júlio Botelho
Moniz, enviando-lhe um abaixo-assinado, onde reafirmam os seus direitos.
“Os abaixo-assinados, como representantes de todos os rendeiros da
Quinta da Gouxa e Atela, sentindo-se altamente prejudicados em virtude
dos actuais proprietários quererem fazer d`uns terrenos que são um mimo
para a produção, uma coutada, alegando que é terreno montanhoso e
inculto, o que não é verdade…
Há rendeiros, conforme se pode provar
com recibos, que cultivam as citadas Quintas há mais de 50 anos e que se
encontram agora, se V.Exª não puser um travão, na situação de ficarem
na miséria, pois que o seu único modo de vida é o da agricultura, como
rendeiros. Ainda há dias quando os rendeiros quiseram ir trabalhar nas
suas courelas foram recebidos a tiros pela Guarda Republicana a mando do
Senhor Presidente da Câmara ou Administrador do Concelho de Alpiarça,
tendo sido feridas várias mulheres e crianças, algumas tendo dado
ingresso no Hospital de Sº José.
Como este estado não pode de forma
alguma continuar devido aos rendeiros estarem com o seu pagamento em dia
e terem sido estes quem d`um terreno inculto fizeram com que desse uma
produção muito compensadora, embora para isso tivessem tido bastante
trabalho, julgamos assistir-nos o direito de continuar a usufruir o
produto do nosso trabalho e suor…e agora, depois do novo proprietário
ver terrenos que produzem em abundância trigo, centeio, cevada, arroz,
legumes, etc., querer, sem motivo que o possa justificar, fazer d`uma
quinta, que é, à força do trabalho e persistência, um mimo em produção,
uma coutada sem proveito para quem quer que seja; demais, na presente
ocasião em que o lema é produzir e poupar.
Em face do exposto, que é
a expressão da verdade, apelamos para o são critério de V.Exª, no
sentido que a justiça, se somente esta, nos seja feita.
A Bem da Nação
Alpiarça 26 de Julho de 1944
Manuel Hipólito Gomes, Fernando D`Almeida, José Florêncio”
Entretanto a decisão do tribunal não tarda. A sentença que então foi
proferida veio de encontro aos seus desejos, uma vez que lhes foi
favorável quanto ao direito, que reclamavam, de permanecer nas terras. O
Dr. Castelão de Almeida já não veria o produto do seu trabalho ser
premiado, morrendo pouco tempo antes de ser proferido o veredicto final.
Os rendeiros não esqueceram a sua acção e homenagearam-no com o
descerramento de uma placa alusiva a esta importante vitória jurídica. A
placa foi colocada num local que era um referencial de vida comunitária
e por isso não foi escolhido ao acaso. No local houvera antigamente uma
eira comum, onde os rendeiros colocavam os cereais, ou para os secar,
ou para os debulhar. Hoje, neste mesmo local, que fica no Frade de Cima,
funciona a Adega Cooperativa da Gouxa. Dali se enxerga toda a Charneca
objecto da disputa que alvoroçou as populações há cerca de 70 anos.
Bibliografia consultada. Pais, José João, “Gente de Outro Ver”,2005
1 comentário:
Gostaria de ver todas estes trechos da história Alpiarcence reunidas e contadas em vídeo.
Porque não gravar vídeos amadores sob o tema "A história de Alpiarça no século XX - As suas lutas e as suas gentes"?
A câmara não tem um departamento cultural?
Já se lembraram de convidar o Sr. Pais para deixar as suas excelentes recolhas históricas gravadas em vídeo?
Juntando ao texto som e imagem (fotos, testemunhos, etc) seria uma obra notável que ficaria preservada.
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