Por: José João pais |
Fragmentos
da História de Alpiarça
Ao longo do ano de 1963 haviam sido efectuadas muitas
prisões políticas em Alpiarça. Aljube, Caxias e Peniche eram, então o “lar” de
muitos alpiarcenses. Com as detenções de 63, a PIDE julga ter acabado com as
movimentações de carácter subversivo na zona. Puro engano. Alguns dos elementos
mais responsáveis politicamente tinham conseguido passar incólumes àquela onda
repressiva, nomeadamente o “Xico Galiza”, Josué “Pangaia” e António João
Pereira Centeio.
Não admira pois, que as movimentações reivindicativas
voltem a agitar os campos de Alpiarça logo no início de 1964. Com efeito,
durante os meses de Janeiro e Fevereiro, os trabalhadores rurais vão à Praça de
Jorna pedir, por duas vezes, aumentos de 5$00 na jorna diária. Mostrou-se
infrutífera esta reivindicação pois os patrões não cedem à pretensão dos
rurais. Mas estes também não se resignam. Assim, é marcada mais uma greve. A
concentração dos trabalhadores faz-se junto à Câmara Municipal. É então
apresentado ao Presidente da Câmara, Dr. António Manuel Gonçalves Saldanha, um
memorando onde constavam os motivos da luta, que eram, como referi, de natureza
salarial e onde também se pedia a garantia de que ninguém seria preso por
participar na greve e na manifestação. Esta última solicitação tinha a sua
razão de ser, face à repressão que constantemente se abatia sobre os
alpiarcenses. Aquele pedido visava obter um compromisso por parte do responsável
autárquico, de que situações idênticas não voltariam a acontecer, pois todos
tinham a consciência que a GNR e a PIDE “marcavam” os “cabecilhas” das greves e
das manifestações e depois efectuavam as detenções. De facto, pelo menos desta
vez, não houve qualquer detenção.
De qualquer modo, a grande maioria das realizações,
fossem culturais, recreativas e até desportivas, que se organizavam em
Alpiarça, acabavam sempre por ter momentos vincadamente politica e de
verdadeira afronta ao regime, quanto mais não fosse pela presença de “pessoas
incómodas”. Foi o que se passou com as comemorações dos 50 anos da elevação de
Alpiarça a concelho. Numa reunião nos Paços do Concelho foi criada a comissão
que iria dinamizar essas comemorações e da qual faziam parte o Eng.º Freire de
Andrade, a Dr.ª Adélia, directora do Colégio, José Luís, em representação da
Câmara e o comerciante António da Conceição Jorge.
E foi na parte cultural que se introduziu o “facto
político”, pois um dos membros da comissão convida para actuar em Alpiarça o
Coro da Academia de Amadores de Música, sob a regência do Maestro Lopes Graça,
ligado aos meios antifascistas. Ao mesmo tempo, programa-se um momento de
poesia que estaria a cargo da Dr.ª Maria Barroso, esposa de Mário Soares, cuja
presença havia sido requerida pelo próprio Maestro. Era evidente a conotação
politica que se pretendia dar ao evento. O êxito foi enorme para desespero de
algumas mentes mais conservadoras. Do programa previamente estabelecido apenas
não se realizou uma conferência sobre economia agrária que tinha como orador
convidado o Eng.º Henriques de Barros, outro conhecido anti situacionista. A
PIDE chegou mais tarde à conclusão, que aliás não era difícil de adivinhar, de
que tinha sido o António Jorge a dinamizar esta parte cultural.[1]
O mês de Abril, que foi o mês do cinquentenário do
concelho, terminara, mas não terminaram as datas comemorativas. Maio
aproximava-se e com ele mais um momento de luta genuinamente política.
Tradicionalmente durante a Ditadura, o 1º de Maio era comemorado com uma
paralisação geral, com manifestações de rua, ou com almoços no campo “à moda
antiga”. A GNR manteve-se atenta, mas não actuou, no que então se considerou
como um recuo táctico. De facto, este 1º de Maio tinha sido precedido de graves
perturbações da ordem pública por ocasião do funeral de Maria Albertina Sabino
que falecera na clandestinidade no dia 18 de Abril. Será talvez interessante
para os leitores, pormenorizar os acontecimentos dramáticos que envolveram a
morte da Maria Albertina. Vamos recuar um ano, para compreendermos melhor o
enquadramento político e pessoal que levou à morte prematura daquela jovem.
Regressemos então, por momentos, ao ano de 1963. Nesse
ano, Maria Albertina, militante comunista de 22 anos, natural de Alpiarça,
junta-se ao seu namorado, Manuel Mendes Colhe, que vivia na clandestinidade à 4
anos. Esta era uma situação normal nas “casas do partido” que serviam de apoio
às tarefas dos “funcionários”. Umas vezes surgiam nas casas “funcionárias” que
não tinham qualquer laço de parentesco com os outros utilizadores, mas também
havia casais constituídos por marido e mulher, que permitiam uma relação mais
normal em termos de visibilidade exterior e na relação com a vizinhança, que se
pretendia que não fosse muito estreita e profunda, mas que também não fosse
conflituosa. É assim que Maria Albertina se junta a Manuel Colhe.
“Estávamos a
fazer a nossa vida com a normalidade possível” refere Manuel Mendes Colhe, “eu saía de manhã, como se fosse para o
emprego e voltava à noite. A Maria Albertina fazia a lida da casa e parecia na
realidade um casal a fazer uma vida pacata e perfeitamente normal. Como normal
foi ela ter ficado grávida. Mas nós dois começamos a perceber da gravidade da
situação, porque não nos podíamos esquecer que estávamos na clandestinidade,
que tínhamos identidades falsas e que qualquer percalço, por mais pequeno que
fosse, poderia transformar-se num grande problema. A gravidez dela era uma
situação a requerer a nossa melhor atenção, atendendo ao modo em que vivíamos”.
O casal decide que o parto iria ocorrer no Cartaxo, na
casa de um amigo de Manuel Mendes Colhe. Correu tudo sem qualquer problema,
tendo nascido um menino que foi registado no Cartaxo e a quem puseram o nome de
Manuel Celestino Sabino Colhe.
Deu-se o regresso a Lisboa e à actividade política na
clandestinidade. “Entretanto a minha
esposa começa a ter febres muito altas” refere mais uma vez Manuel Mendes
Colhe, “tomou alguns medicamentos, mas
nada fazia baixar a temperatura. Tratava-se de uma infecção muito forte nos
ovários, motivada pelo parto e que não fora convenientemente tratada devido à
nossa situação de clandestinidade, que não nos permitia grandes exposições
públicas, o que evitávamos a todo o custo. Ainda foi ao médico, mas, numa
altura em que eu estava fora, ela sentiu-se pior e foram as vizinhas que a
levaram para o Hospital de Santa Maria, onde ficou internada com o nome falso
de Maria Fernanda Pais Damião. No outro dia, quando cheguei a casa, vi logo que
tinha havido problemas, pois as vizinhas vieram ter comigo a dizer: – oh
vizinho, a sua mulher está pior. Percebi logo, pela cara delas, que o pior
tinha acontecido e que estavam apenas a preparar-me para me darem a notícia
fatal.
Na verdade,
no dia 18 de Abril de 1964 a Maria Albertina faleceu com apenas 23 de idade, 22
dias depois de ter o filho e quando se encontrava na clandestinidade”.
A notícia chega célere a Alpiarça. Forma-se, de
imediato, uma Comissão destinada a organizar e a custear o funeral e que é
composta por: - José Faustino Rodrigues Pinhão, Alcindio Pinhão, Olímpio
Francisco Oliveira, Rui Batista Feliciano “o Rui Balsa”, Jerónimo Nazaré e
António Conceição Jorge. Foi através do esforço desta comissão, e de mais
alguns elementos, que percorreram as propriedades rurais e os estabelecimentos
comerciais e industriais, que se obtiveram os fundos para a transladação do
corpo de Lisboa para Alpiarça e se conseguiu a mobilização popular para estar
presente no funeral, pois todos os estabelecimentos comerciais fecharam nessa
ocasião[2].
No dia 23 de Abril, Alpiarça ficou em “estado de
sítio” com a realização do funeral. Uma multidão imensa encheu por completo a
Rua do Casalinho até ao cemitério, controlada de perto por um enorme
contingente policial onde não faltavam os elementos da PIDE. A GNR chega a
entrar no cemitério, espancando aqueles que ousavam lançar palavras de ordem
contra o regímen político que governava o país. Algumas das imagens do funeral
haveriam de ficar registadas em fotografias tiradas por um fotógrafo que foi
convidado para o efeito por Natalino Paciência Andrade.
O Chefe de Brigada, que dirigia o posto da PIDE do
Entroncamento e que estava presente, descreve no seu relatório o que se passou: “O féretro, procedido por duas alas de
mulheres, dirigidas pela comissão que lhes ia dando instruções, e que ao mesmo
tempo regulava o trânsito, era acompanhado por mais de 2.000 pessoas, sem que
muitas delas conhecessem a falecida ou os seus familiares.
À porta do
cemitério, o irmão da falecida, Fernando Agostinho Sabino, leu uma carta que
dizem ter sido escrita pelo Manuel Mendes Colhe e onde afirmava a falta de
assistência dispensada no Hospital ao saberem que a doente vivia na
clandestinidade.
Antes da
leitura da carta, António da Conceição Jorge fez uma alocução acerca da
falecida. Suspeita-se que a carta referida não seja do Colhe mas sim do António
da Conceição Jorge, que enviou também a notícia do funeral para o jornal
República que ultimamente tem estado bastante activo…
Embora todos
os elementos da citada comissão sejam elementos suspeitos de pertencerem ao
p.c.p. e tenham cadastro nesta Polícia por actividades contra a segurança do
Estado, há que destacar o José Faustino Rodrigues Pinhão, que foi quem recebeu
o telefonema a comunicar o falecimento da Maria Albertina e organizou a
Comissão, revelando-se mais uma vez o mentor das actividades subversivas de
Alpiarça e Olímpio Oliveira, elemento que, segundo consta, recebe os fundos
para o partido e que é para o efeito procurado na sua oficina, aos Sábados, por
muitas mulheres do campo, entre elas Adelina Arranzeiro Calarrão, casada com
João Cravina Isidoro, motorista dos “Claras” e também já referenciado como
suspeito de actividades subversivas. O Olímpio sai com frequência,
ausentando-se por períodos de 3 e 4 dias, desconhecendo-se para onde se
desloca”[3].
Eu ia a pé
para os Patudos onde uma multidão esperava o funeral – diz António Conceição Jorge. De carro, em sentido
contrário, encontrei o Dr. Hermínio, que vinha da Instituição José Relvas, onde
era o Presidente. Quando me vê, pára o carro e diz-me: “Volta para trás António Jorge, tu és muito emocional e depois dizes
coisas que te poderão trazer problemas”.
Continuei o
meu caminho e esperei, no meio daquela multidão, que chegasse o caixão.
Depois viemos
todos a pé até ao cemitério, lembro-me que vinha ladeado pelo Zé Pinhão e pelo
Olímpio de Oliveira. Quando o funeral chegou ao cemitério vi alguns carros da
PIDE, onde conheci o Capitão Inspector Porto Duarte, os chefes de brigada José
Gonçalves e Gouveia, “tipos” que eu nem podia ver à minha frente, pois já me
tinham feito a “vida negra” em interrogatórios. Dirigi-me ao Inspector:- Vocês
não são os responsáveis directos, mas indirectamente o que aconteceu à Maria
Albertina é da vossa responsabilidade. Enquanto a ditadura se mantiver, casos
como este, continuarão.
Sentia-me
muito emocionado e há coisas que não me faziam calar. Esta era uma delas.
Então
dirigi-me à multidão (eram talvez mais de 5.000 pessoas), empurrado por alguns
acompanhantes e sentindo que ao menor atrito haveria problemas graves entre a
PIDE, GNR e a população: “Amigos! Por favor curvemo-nos perante este caixão e
esta desgraça. Peço-vos que vão para casa em sinal de respeito pela memória da
falecida.
O resto do
funeral decorreu num silêncio impressionante. No fim, as pessoas dispersaram
sem uma palavra, não dando motivos para qualquer prisão ou violência”.
O funeral de Maria Albertina Sabino foi, na realidade,
um dos momentos políticos que marcou o ano de 1964 e que iria trazer
consequências nefastas para alguns dos intervenientes nesse acontecimento, como
é o caso de Fernando Vieira Pires “o Setenta”, que é detido no dia 29 de Maio,
sendo libertado a 24 de Julho; Fernando Agostinho Sabino “o Carqueja”, irmão da
falecida, que é detido no dia 6 de Junho, só sendo libertado a 28 de Setembro
de 1964; Alcindio e José Pinhão, ambos pertencentes à comissão que organizou o
cortejo fúnebre, o último detido a 29 de Maio e o irmão detido a 6 de Junho,
tendo sido ambos libertados a 24 de Julho; Jerónimo Nazaré, que fez também
parte da comissão e que seria detido no dia 2 de Julho e libertado a 3 de
Agosto. Escapou momentaneamente o Olímpio Oliveira, o Rui Balsa e o António
Jorge. Este último haveria de cair nas mãos da PIDE pouco tempo depois.
Bibliografia consultada: Pais, José João, Gente de Outro
Ver, edição de autor, 2005
2 comentários:
Gostei muito deler este episódio, tal como os outros anteriores. Está muito bem escrito e muito bem documentado. É, de facto, um grande historiador que temos em Alpiarça. Bem haja. Fico a aguardar mais.
Quero prestar aqui também a minha homenagem a José João Pais, pelo seu magistral trabalho em prol da cultura alpiarcense e não só. São documentos compilados e devidamente organizados com uma narrativa primorosa que, ficarão para memória futura. A História agradecerá.
M.C
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