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quarta-feira, 2 de novembro de 2011

75 Anos do Campo do Tarrafal: "Eles queriam aterrorizar a oposição"

Teve uma “vida interrompida”. Aos 15 anos foi preso pela primeira vez. Aos 16, a segunda. Aos 17 foi deportado para o Campo de Concentração do Tarrafal. Viu amigos a morreram ao seu lado, cavou uma vala à volta do sítio onde esteve “longe de tudo”, adoeceu e esteve a “pão e água” na cela punitiva - a “Frigideira”. Edmundo Pedro, ex-prisioneiro, recorda como foi sobreviver no "Campo da morte lenta".
Aos 92 anos, Edmundo Pedro, um dos dois “tarrafalistas” vivos que “estrearam” o campo de concentração aberto por Salazar, recebeu o SAPO em sua casa, em Lisboa, e recordou com pormenor o tempo em que esteve preso em Cabo Verde. A chegada à ilha de Santiago ocorreu há 75 anos, a 29 de Outubro de 1936.
Viviam-se os primeiros anos do Estado Novo, regime ditatorial chefiado por António de Oliveira Salazar, em Portugal. Corria a década de 1930 e Edmundo Pedro entrava para a Juventude Comunista com 13 anos. “Não admira nada que aos 15 estivesse preso”, ironiza. A primeira vez que teve problemas com o Regime foi por estar envolvido numa “missão relacionada com a tentativa de uma greve geral”. Estava a “distribuir panfletos do partido”. Esteve preso 17 dias. Depois, e ainda em consequência desta “missão”, foi preso novamente, condenado a 1 um ano de prisão.
Os ideais comunistas não esmoreceram com o tempo de cárcere, talvez tenham até ficado fortalecidos e logo que saiu em liberdade Edmundo voltou às lides políticas. “Assim que saí reingressei na Juventude Comunista (JC). Fui eleito com Álvaro Cunhal (dirigente histórico do Partido Comunista Português) para a direcção da JC”, explica com orgulho.
A liberdade perdida aos 17 anos
O jovem Edmundo tinha 17 anos e uma vontade enorme de resistir ao Governo que vigorava. As suas pretensões e as dos que, como ele, se opunham ao Regime tinham de ser combatidas. “Tinha havido a Guerra Civil de Espanha. E eles (o Governo português) queriam aterrorizar a oposição em Portugal”. É assim que Edmundo Pedro explica as razões que levaram Salazar a decretar a construção do Campo do Tarrafal, também conhecido como Colónia Penal do Tarrafal.
Os tempos eram difíceis para quem não concordava com as políticas da altura e Edmundo foi preso novamente em Janeiro de 1936. A deportação para Cabo Verde ocorreu em Outubro do mesmo ano. Edmundo Pedro foi um dos 152 homens que foram no primeiro navio para a Colónia Penal. Esteve lá nove anos. Não houve julgamento. A Polícia, conta o ex-prisioneiro com um sorriso na cara, deve ter concluído: “Bom, este gajo esteve preso um ano, foi condenado, saiu e voltou a entrar para a JC, portanto não tem emenda – Tarrafal com ele.”
“Nós fomos em classe de boi”
A viagem foi feita num “ambiente sufocante”, porque muita gente, explica minuciosamente Edmundo, “enjoava, vomitava e nunca se pôde lavar aquilo”. “Fomos em classe de boi”, afirma. E não se pense que é uma força de expressão: “Naquele porão onde se transportavam os bois fizeram uma série de beliches de madeira, uns por cima dos outros e deitaram creolina para desinfectar. Mas o cheiro a azedo superava o odor do desinfectante.” Foram onze longos dias a bordo do navio “Luanda”, até chegarem a “um rectângulo cercado por arame farpado”.
Passaram 75 anos, mas Edmundo detalha tudo como se tivesse vivido a chegada ao Campo há meia dúzia de semanas. “Era uma instalação muito rudimentar. Tínhamos direito a dois ou três púcaros de água por dia”, recorda. No princípio as instalações dos prisioneiros eram umas “barracas de lona”, mas ao fim de um ano e meio apodreceram, devido ao tempo e à chuva. “Na fase final das barracas dormíamos ao relento, chovia lá dentro”, lembra. Depois construíram “barracões de pedra e cimento”, que perduram até hoje.
A primeira fuga
Não há prisão que não tenha histórias de fugas (Ver vídeo “A fuga que acabou na ‘Frigideira’”), ou pelo menos de tentativas. O Campo do Tarrafal não é diferente e ao longo dos anos foram várias as vezes que os prisioneiros tentaram evadir-se. “Ao fim de um ano tentámos uma fuga colectiva. Havia 40 homens que iam assaltar a casa da guarda e o quartel”, recorda. O pai de Edmundo, que também estava detido no Tarrafal e que também foi um dos primeiros 152 prisioneiros a chegarem ao “Campo da morte lenta", era um deles. Edmundo ficou com a tarefa de vigiar a entrada da Colónia.
A noite já levava algumas horas e a evasão estava quase a dar-se quando Edmundo viu um guarda aproximar-se da entrada do Campo, acompanhado por um cabo-verdiano que carregava uma saca às costas. Edmundo deveria ter avisado os homens que se preparavam para fugir que algo de anormal se passava, mas não o conseguiu fazer a tempo. Quando o guarda chegou à cozinha, para colocar o grão que estava dentro do saco de molho, deparou-se com 40 homens que não podiam estar ali.
O alerta foi dado. As metralhadoras começaram a disparar para todos os lados. Houve um prisioneiro que, por instinto, colocou um prato na cabeça e outro junto ao coração. No meio da aflição todos os meios parecem válidos para tentar não morrer. Edmundo também escapou. “É engraçado como me lembro tão bem do que fiz. Deitei-me na cama e deixei-me estar. Foi a maneira que arranjei para oferecer o menor alvo possível às balas”, explica.
Se pudessem imaginar o que os esperava depois da fuga falhada, talvez não tivessem tentado fugir. O director do Campo mandou construir uma vala profunda em redor do local. A ideia era complicar a vida aos aventureiros que tentassem sair dali a qualquer custo. Foram momentos difíceis os que se seguiram. “Não sei se podem imaginar o que é estar no fundo de uma vala de quatro metros, onde o Sol se concentra… O que é que aconteceu?”, questiona retoricamente Edmundo. “É fácil. Começámos a cair todos para o lado, doentes. Eu fui dos últimos a resistir, mas também caí. De 170 (o número de prisioneiros que já estavam no Campo nessa altura), só ficaram seis ou sete em pé. De resto foi tudo parar à cama, com paludismo", conclui Edmundo.
A vida a que se habituaram
Numa semana de trabalhos para construir o fosso morreram seis pessoas. “É o chamado ‘Período Agudo’”, explica Edmundo. Os trabalhos, os do fosso e outros a que os prisioneiros eram obrigados, eram duros, mas Edmundo conta que se foram habituando: “Depois fomo-nos adaptando àquela vida. De vez em quando morria um…”.  Durante os nove anos em que Edmundo permaneceu no Campo do Tarrafal morreram 32 pessoas. “E houve muitos que morreram pouco depois de chegar a Portugal”, lamenta.
A vida dentro da Colónia não era fácil. Mas também não se pode dizer que os prisioneiros não tivessem nada para fazer. “Nos primeiros tempos fiz de tudo. Parti pedra na pedreira, carreguei pedra. Trabalhei nas estradas à volta do Campo”, recorda. E ainda havia uma série de actividades a que os detidos se podiam dedicar: os trabalhos relacionados com a electricidade, a oficina de mecânica e a oficina de serralharia, onde Edmundo Pedro passou bastante tempo, já que era “ajudante” do responsável. Nos últimos dois anos em que esteve detido, Edmundo deixou de trabalhar no Campo. A doença, tuberculose, não o permitia.
Edmundo Pedro foi apenas um entre as centenas de homens que foram deportados para Cabo Verde. Durante os nove anos em que lá esteve acumularam-se as histórias deste homem que, como os outros, fazem parte da História. Quando regressou a Portugal, Edmundo Pedro foi finalmente julgado. Depois de quase 10 anos preso, foi novamente condenado, a 22 meses de “prisão correccional”. 
«Sapo»

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