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quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ao contrário do que se pinta, "mudou de ideias"

Domingos Abrantes foi um dos escolhidos para suceder a Álvaro Cunhal. Só conheceu o líder do PCP em 1973, em Paris, apesar de ser militante desde os anos 50, porque as prisões de um e de outro não o permitiram antes
Sempre foi dos dirigentes mais fieis a Álvaro Cunhal. O termo fiel não é o mais adequado. Trabalhei dezenas de anos com ele, acompanhei muito a fase final da sua vida, tínhamos os gabinetes perto um do outro, falávamos muitas horas da vida do partido, das pessoas ou dos gostos. O camarada Cunhal era uma pessoa que gostava de conversar, porque essa também era uma forma de conhecer as pessoas. Estava sempre muito atento aos pequenos gestos porque têm mais importância do que parece. Muitas vezes é pelas formas de vida que as pessoas se perdem, em pequenos hábitos incompatíveis com as condições de vida. Ele costumava dizer que sempre se habituou a viver com o dinheiro de funcionário. Por isso, posso dizer que, ao contrário do que se pinta, Cunhal era uma pessoa que ouvia muito atentamente; não era aferrado às ideias e mudou de opinião no decurso das discussões.
A queda do Muro de Berlim e do império soviético foram os momentos que mais o abalaram?
Não há ninguém que não possa ser abalado com isso, mas ele viveu outros momentos muito difíceis na sua longa vida. Foi preso várias vezes, viveu a revolução e depois o avanço do fascismo! Não é uma pessoa que tenha vivido sem grandes sobressaltos, grandes avanços e grandes recuos. Assistiu a muitas vitórias e muitas derrotas do movimento operário e revolucionário, mas, naturalmente, essas duas derrotas de que falou foram as maiores. Creio que nessa questão concreta, manteve uma serenidade ao contrário do que se pode pensar. Ao contrário de outros dirigentes comunistas que deitaram pela porta fora patrimónios e heranças, ele não o fez. E acho que a vida lhe deu razão.
Quando tratou da sua sucessão, o seu nome era um dos preferidos?
Ele tinha a noção das leis da vida e dizia que deve-se sair de cena enquanto se está em condições de se sair por si. Nesse aspecto queria ser ele a decidir e estar em condições de fazer a sucessão. Não era no sentido de "este é o meu" porque a opinião do colectivo era decisiva.
No XII Congresso era o sucessor dele?
Estiveram sobre a mesa várias pessoas porque os momentos também foram mudando e havia a ter em conta a opinião dos próprios. Também porque vivemos num mundo em que os "melhores" podem não ser a boa solução, foram sendo construídas soluções de acordo com os tempos, com a opinião do colectivo e com a intervenção dele.
Mas era a solução dele?
Não diria que houve solução Domingos Abrantes, houve várias.
Era uma das que ele gostaria?
Sim... Fui um dos primeiros camaradas que teve de pensar, mas não considerei ter condições para essa tarefa.
A seguir, Cunhal andou em dúvida entre Carvalhas e Luís Sá?
Isso é uma história que está mal contada e uma aldrabice completa. Não percebo como é que o [Carlos] Brito o diz!
Deveria conhecer bem o PCP...
Mais surpreendente. Isso é completamente mentira, pode escrever.
A primeira ideia era Carvalhas?
Sem dúvida! Desde o princípio! O Carvalhas tinha as suas reservas por problemas de família e pessoais. Sei do que estou a falar porque intervim directamente nisso.
Sendo um dos mais íntimos de Álvaro Cunhal, como é que vê o seu legado cinco anos depois?
É um camarada que será difícil esquecer. E, num certo sentido, podemos dizer quase que era contraditório trabalhar com ele porque as fasquias que punha eram sempre muito altas, pelas qualidades que tinha e exigências do trabalho.
Estava acima da média dos dirigentes do partido?
Isso é evidente! Que se destacava pelos conhecimentos, capacidade de trabalho e resistência extraordinárias e uma cabeça arrumada.
Por isso é que se dizia que ligava a cassete e era o mesmo discurso?
Essa expressão tem um sentido pejorativo. O Cunhal era um estudioso de várias e vastas matérias - da teoria política, arte, literatura e cinema - e até afirmava que era preciso viver mais 100 anos para acabar o que tinha em mãos. A cassete dá ideia de uma coisa repetitiva, o que não era o seu caso, por ser atento à vida.
Cinco anos depois não mudou de opinião sobre Cunhal?
Antes pelo contrário! Se tivesse que o definir, para além destas qualidades, seria como uma pessoa que viveu e actuou em conformidade com as suas ideias e um padrão de conduta em coerência com o que pensava que era o dever e a ética comunista. No quadro dos políticos portugueses, direi que é quase um caso único.
Hoje em dia assiste à renovação do PCP com dirigentes mais jovens. É suficiente para evoluir?
Mal vão os partidos em que os dirigentes vão ficando até cair para a cova. Eu creio que sempre se foi caldeando os velhos dirigentes com os novos - não é de agora - e é isso que tem assegurado a continuidade e o rejuvenescimento da organização. Cada geração traz as suas qualidades e as visões do mundo. O grande problema é a resposta aos novos fenómenos de vida que fazem o quadro de luta ser diferente.
Cunhal "abençou" a sucessão de Carvalhas por Jerónimo. Porquê?
O termo não é esse. O camarada foi naturalmente informado da nossa actividade mas, ao contrário do que se diz, foi a direcção que decidiu.
Deu opinião porque pretendia que o partido lhe sobrevivesse?
A uma pessoa que deu uma vida inteira ao partido, a maior alegria que se lhe podia dar era a garantia de que o partido vai continuar comunista e com as características que tem. Creio que morreu com uma enorme confiança de que este partido se mantém fiel aos seus princípios e à sua história.
Nos últimos tempos acompanhou-o?
Sim, falei com o camarada Cunhal até relativamente pouco tempo antes de morrer.
Cunhal foi ultrapassado pela história nos últimos tempos?
Eu creio que o tempo que estamos a viver não nos dá menos razões que em outros momentos para lutar contra o que está errado nesta sociedade.
«dn»

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