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quinta-feira, 15 de maio de 2014

Recordações da Nazaré

Por: Isabel Faria
A Nazaré era a "nossa" praia. No final dos anos 60 e inicio dos anos 70, o Algarve ficava no fim do mundo. Não tínhamos carro e apanhávamos o autocarro, cedinho de manhã, na Rua Direita. Fui poucas vezes com os meus pais - não havia dinheiro para isso. A maioria das vezes ia com os meus avós. Eles alugavam uma casa e íamos de malas aviadas. Demorávamos uma manhã a fazer 100 km.

A imagem que tenho destes anos era esta. Os homens partiam para a faina e as mulheres esperavam-nos às portas de casa. Ou na praia. Usavam sete saias e sim, grande parte das vezes, recordo-as de negro. De noite, a sirene tocava. Havia tragédia. Em segundos, as mulheres de preto da imagem saiam de suas casas (muito mais tarde alguém me disse que enquanto os maridos ou os filhos andavam no mar, dormiam sempre vestidas). As ruas enchiam-se de mulheres que corriam para a praia. Fizesse Sol ou fizesse chuva, estivesse o mar calmo ou revolto, a vida obrigava os homens a partir para o mar. E as mulheres a esperarem por eles. Rezando. 

Não sei se a sirene continuava a tocar. Não me lembro como acabava a noite. Recordo que um ano, a senhora que nos alugou a barraca da praia não a veio fechar, ao inicio da noite, como fazia sempre. Veio um rapaz, ainda quase um menino, vestido de preto. 

Nazaré- Anos 60 ....
O meu tio ficou no mar, disse-nos. Perante o olhar assustado da minha avó, disse baixinho: é nossa vida. Já nos habituámos. Eu não fazia ideia o que era a morte.

Estive muitos anos sem voltar à Nazaré. Muitos anos mais tarde, voltei e vi o porto de abrigo dos barcos. Nunca ouvi a sirene de noite. Destas últimas vezes não guardo nenhuma memória de mulheres vestidas de preto. 

Os maridos delas e os filhos continuavam a partir para ganhar a vida, mas tinha-se conseguido evitar que cada viagem fosse um passo certo para uma morte anunciada. E precoce.


É verdade que também ajuda a total ausência de negro da minha memória, o facto de as últimas vezes que estive na Nazaré, ter estado com os meus pais e o meu filho. E já há muito ter sido Abril.

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