Fragmentos da nossa História
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Por: José João Pais |
Fragmentos da nossa História - Parte 1
1950 – Ano da morte de Alfredo Lima e de Manuel Vital
O ano de 1950 é para mim um ano histórico. Alpiarça esteve a ferro e
fogo durante o mês de Maio. Manifestações e confrontos violentos na
praça de jorna levaram á prisão de muitos alpiarcenses e à morte de
Alfredo Lima. Por outro lado, em Novembro, aparece um cadáver na zona de
Alcochete, que se vem a descobrir ser de outro alpiarcense que havia
dedicado parte da sua vida, grande parte dela na clandestinidade, à
actividade politica – Manuel Vital. Em 1950, no mês de Outubro, foi
também o ano do meu começo como ser vivo. Morte e vida, é o círculo
incontornável da humanidade. Mas não é de mim que vou falar. Irei, sim,
abordar acontecimentos muito mais interessantes para os leitores,
nomeadamente os que levaram à morte primeiro de Alfredo Lima e,
posteriormente, de Manuel Vital. São, de facto, assuntos palpitantes,
pouco conhecidos e que podem motivar a curiosidade geral. São fragmentos
da História de Alpiarça. Comecemos por perceber como é que Alfredo Lima
morreu.
À entrada na segunda metade do século havia uma sensação de
esperança em toda a Europa e em Portugal também. Acabara a 2ª Guerra
Mundial e era expectável uma época de paz. O Plano Marshall ia ajudar a
reconstruir a Europa destruída. Começava a pensar-se numa Europa mais
unida que afastasse de vez qualquer hipótese de nova guerra. Portugal
ficara afastado da catástrofe que assolara o mundo, jogando, até muito
tarde em dois tabuleiros, mas na reta final, posicionámo-nos ao lado dos
vencedores. Em 1949 tivemos eleições para Presidente da República com
dois Generais como protagonistas, Carmona, próximo de Salazar e Norton
de Matos pela Oposição. Houve uma campanha aguerrida, nomeadamente em
Alpiarça, em que foi visível o apoio a Norton de Matos, com uma comissão
de candidatura onde se destacavam, entre outros, João Gaspar, António
Barata Fragoso e Carlos Pinhão.
Nos campos do Ribatejo a situação
dos trabalhadores agrícolas mantinha-se precária. É convicção geral que
só com muita pressão na Praça Velha, onde se discutiam as jornas, se
conseguiriam pequenos passos para melhorar as condições de vida e a
retribuição semanal. Mas a praça de jorna não se realizava já há
bastante tempo. Isso era um grande obstáculo para se concertar posições.
Discutir formas de luta era o que estava no centro das conversas entre
trabalhadores nos primeiros meses de 1950. As reuniões
intensificavam-se. Chega-se a avançar com uma data precisa para se
realizar uma greve – 28 de Maio. Esta data acaba por sofrer um duro
golpe pois a PIDE consegue aperceber-se das movimentações e deter
algumas pessoas que suspeitavam estarem na base das mesmas. São então
presos os seguintes trabalhadores rurais tidos como “cabecilhas”:
Gabriel Feijão Coelho, preso a 1 de Abril e libertado a 23 de Outubro,
tal como Abel Favas Paúl, mas este fica mais um mês na prisão; Celestino
Alcobia Marques, detido a 27 de Abril e libertado a 15 de Junho;
António Batata Marto detido a 27 de Abril e solto a 19 de Outubro;
Celestino da Costa Tendeiro “o Freilão”, preso a 22 de Abril e libertado
a 23 de Novembro; António Cavaca Calarrão, preso a 21 de Maio, tal como
Joaquim Agostinho Marujo e Leocádio Teodoro do Vale, mas este, tendo
sido detido a 19 de Março, só é libertado a 15 de Novembro de 1952. São
todos acusados de pertencerem ao Partido Comunista. Foi de facto um duro
golpe que a PIDE conseguiu infligir aos ativistas políticos
alpiarcenses. As lutas que se desenhavam e discutiam nas reuniões
pareciam, assim, comprometidas. Aparentemente os trabalhadores ficavam
sem o seu grupo orientador. Mas se a polícia política julgava que as
reivindicações acabariam por ali, enganou-se nos cálculos. De facto,
mantém-se, ou aumenta até, a atitude reivindicativa por melhores
salários junto dos diversos ranchos. Pede-se um aumento de 20 para 30$00
para os homens e defende-se a jorna de 15$00 para as mulheres que,
tradicionalmente, ganhavam metade dos homens. E são, na realidade, as
mulheres que defendem com maior determinação os seus objectivos.
Clarisse Tacão, Felismina da Conceição Figueiredo “Sapateira” e Lucinda
Samarra parecem assumir a liderança da contestação feminina. Não era uma
situação habitual entre a classe feminina, já que os homens lideravam
normalmente estas movimentações. Mas nesta altura são elas que assumem
um protagonismo maior e combinam uma acção conjunta com os homens para o
dia 4 de Junho de 1950. Local de encontro Praça Velha. Hora marcada, 8
da noite.
No dia e na hora combinada assiste-se a uma enorme
movimentação de homens em direcção à Praça Velha. As mulheres, por sua
vez, têm como lugar de concentração a Rua da Junta, por detrás da
igreja, ao lado da oficina do Rabico e a escassos 50 metros do local
onde os homens se juntam. Há 3 anos que a praça de jorna não reunia para
proceder ao aumento de jornas. Ninguém pode prever o que irá a
acontecer e qual será o comportamento dos capatazes e dos trabalhadores
quando chegar à altura de discutir o valor das jornas. Nota-se, por
isso, uma inusitada ansiedade em cada rosto. A tensão sobe á medida que a
multidão engrossa em toda a área envolvente à Praça.
Vamos então
assistir ao que se passou em Alpiarça naquele fim de tarde, princípio de
noite, do dia 4 de junho de 1950. Demos a voz aos que estiveram no
local e foram elementos ativos nos acontecimentos. Autoridades,
manifestantes, simples observadores, darão o seu ponto de vista daquilo
que observaram. São testemunhas dos acontecimentos. Por isso, ninguém
melhor que eles para nos contarem, à sua maneira é certo, aquilo que se
passou. Do confronto do que cada um disse, poderemos tirar as nossas
conclusões.
Comecemos pelas autoridades policiais e pelo relatório
elaborado pelo Inspetor José Aurélio Boim Falcão, pelo Chefe de Brigada
Manuel Luís Macedo Farinha dos Santos e pelo Tenente da GNR, Joaquim
José Carreira, comandante da secção enviada para Alpiarça durante estas
movimentações. Diz assim: “Deu origem aos incidentes, segundo apurado
até agora, o pedido de aumento de salários apresentados pelos rurais,
homens e mulheres, na Praça dos Trabalhadores realizada em Alpiarça dia 4
do corrente mês. Ganhavam os homens e mulheres até essa data,
respetivamente 20 e 10 escudos, mas nesse dia foi apresentado aos
capatazes encarregados de contratar pessoal o pedido de aumentos de
salários, não se dispondo os homens a trabalhar por menos de 30$00 e as
mulheres por 15$00.
Dessa reclamação, não aceite pelos capatazes,
nasceu um alarido mais intenso entre as mulheres, que originou a
intervenção da patrulha da GNR encarregue de manter a ordem na rua.
Esclareça-se, que a intervenção da patrulha se deu por aviso de uma
mulher, Prazeres da Conceição Franco, que informou os soldados do
referido alarido, muito embora não tivesse a ver com eles por não ser
trabalhadora.
Quando as praças se dirigiram ao grupo formado pelas
mulheres, viram-se subitamente rodeados por cerca de 3 centenas de
homens, que, em atitudes ameaçadoras, pretendiam entravar-lhes a acção,
gritando que o que eles queriam era mais dinheiro e que a GNR nada tinha
a ver com o assunto.
Como o grupo aumentasse a todo o momento,
tendo sido proferidas frases exaltadas, como “fora, fora” e “vamos a
eles”, e como alguns trabalhadores procurassem desarmar os dois
soldados, estes dispararam vários tiros para o ar. Talvez porque os
tiros foram para o ar e confiados no número, os trabalhadores insistiram
nos impropérios, passando a certa altura a apedrejar os soldados.
Prudentemente, estes ainda voltaram a disparar as suas armas para o ar e
só quando o insulto atingiu maiores proporções e as pedras choviam de
todos os lados é que eles se resolveram a fazer alguns tiros para as
paredes frontal e lateral esquerda da rua onde se achavam aglomerados os
trabalhadores que entretanto haviam recuado perante a ameaça dos
disparos.
Para se ajuizar se houve ou não a maior prudência da parte
dos soldados, basta que se diga que dos cerca de 20 tiros disparados,
foram apenas atingidos 4 dos díscolos (desordeiros), um dos quais veio a
falecer na 2ª Feira, dia 5, no Hospital de Santarém, para onde foi
conduzido pelo próprio comandante do Posto de Alpiarça, 2º Sargento
Francisco Pires. Tanto o falecido como os feridos foram atingidos pelos
estilhaços produzidos pelo ricochete das balas que bateram nas paredes e
não pelos tiros diretos, o que se sabe ser verdade, pois é o que consta
de todos os exames médicos feitos aos feridos e da autópsia feita ao
falecido. Ainda em abono da patrulha, que se portou valentemente, manda a
verdade que se diga, que os tiros feitos para as paredes foram-no
depois dos soldados já estarem feridos pelas pedras arremessadas contra
eles.
Serenados um pouco mais os ânimos com a chegada de 3 praças
que se encontravam de serviço no cinema local, foi dispersa a multidão,
encerradas as tabernas, restabelecendo a GNR a ordem e tendo o Posto,
mais tarde, sido reforçado com soldados vindos de Santarém sob o comando
do tenente Carreira.
Foram detidos por fazerem parte da agressão á patrulha:
Joaquim Rosa do Norte, “o Gino”, Flausino Abalada Fernandes, José da
Conceição Bernardo “o Cabano”, Joaquim Maria Pedrosa, Alberto Céu Pinto
“o Parente”, Diamantino Conceição Bernardo “o Cabano”, Joaquim da
Conceição Elias “o Serrador”, Rui Freitas Margaça, António Malaquias
Abalada “o Borlota”, Júlio Agostinho Marques “o Porqueiro”, António
Caetano Quartilho “o Besuntado”, Raúl Alcobia Belindorro, António Ilídio
Bento lima, Joaquim Claudino dos Santos “o Joaquim Rabicha”, José
Augusto Pinto “o Isaías”. Sendo ainda apresentadas como supostas
instigadoras do conflito acima referido, ou nos acontecimentos
precedentes que com eles se relacionaram: Clarisse Tacão, Felismina da
Conceição Figueiredo “Sapateira” e Lucinda Samarra. São portanto 15
homens e 3 mulheres detidas nos dias 12 e 13 e conduzidas para as
prisões desta polícia na madrugada de 14. Acabam por também ser detidos
mais tarde, a 20 de Junho na zona da Azambuja, Júlio Farroupo Lagarto
que se ausentara de Alpiarça durante a noite, acabou por escapar à
prisão. Outras detenções mais tardias são as de Joaquim Fernandes d’Avó
“Joaquim Courela” e Manuel Conceição Elias “Manuel Serrador”, também
conhecido por “Manuel Isabelinha”, que só vem a ser detido no dia 29 de
Julho na Quinta da Gouxa.
Refira-se que os feridos não foram detidos
por se encontrarem, um internado e outro, Angelino Arraiolos, com
alguns dias de incapacidade dada pelo médico que o está a tratar.
Os feridos tratados pelos médicos Dr. Mário Restani Romão e Dr. Mário
Zuniga, chamados ao Posto, foram os dois guardas com feridas nas mãos e
que se queixavam de fortes dores na espinha dorsal, lesões provocadas,
segundo os médicos por “instrumentos contundentes”; o Angelino
Arraiolos, que foi ferido por ricochete de projétil; Raúl Farroupo
Casaca e Manuel Piscalho da Silva, que apresentavam também alguns
ferimentos”.
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