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domingo, 7 de setembro de 2014

CULTURA AVIEIRA: Culinária Avieira - Uma cozinha de adaptação à vida à beira-rio



Por: Lurdes Véstia (*)
Uma comunidade é reconhecida como forte quando preserva os seus traços culturais, quando os desenvolve e os transmite de geração em geração. Alimentar-se vai para além de um simples ato de nutrição, é um ato social que está fortemente presente nas raízes de um povo e é uma componente fundamental e imprescindível do quotidiano das comunidades. A alimentação tem um significado simbólico, é arte, é cultura.
Previamente há que realçar a importância da gastronomia dentro da comunidade Avieira. É, geralmente, à volta de uma mesa que se realizam os encontros familiares e se consolida o espírito de coesão e de união da comunidade. É, igualmente, neste contexto de socialização primária que os mais novos, instigados a cumprir as regras sociais vigentes sobre o que comer, como comer e como fazer o comer, recebem as informações transmitidas pela família aqui no seu papel de intermediária entre os jovens e a sociedade. Regra geral, os grandes momentos de alegria das famílias Avieiras são acompanhados de eventos gastronómicos: casamentos, nascimentos, batizados, aniversários, isto é, todas as datas festivas e simbólicas.
A culinária Avieira não foge à regra geral descrita na teoria de que «é a arte de saber comer e beber bem». A culinária Avieira é cultura, é tradição, são raízes fortemente impregnadas na comunidade e que se vão passando de geração em geração. É esta união para preservar o que é deles e de mais ninguém que torna esta gente tão forte. Como diz a investigadora Maria Leonor Soares Leal, no livro «A História da Gastronomia», «cozinhar é uma ação cultural que nos liga ao que fomos, somos e seremos e, também, com o que produzimos, cremos, projetamos e sonhamos».
Tradição, adaptação e subsistência. Estes são os traços que identificam as origens da cozinha Avieira, esta arte culinária tem características mediterrânicas e é marcada pela presença das ervas do campo e de peixes do rio, como o sável, a saboga, a fataça a enguia ou o barbo.
A culinária dos Avieiros é fruto do ambiente natural de proveniência – Praia da Vieira – da cultura própria da comunidade e dos locais para onde migraram. A culinária Avieira foi, portanto sendo cruzada, ao longo do processo de assentamento (pelo menos desde 1833), com os recursos disponíveis, as necessidades e as práticas ancestrais da comunidade. Nos primeiros momentos, quando pretenderam sedentarizar-se nas margens do rio Tejo, os pescadores Avieiros não tiveram como alvo as zonas férteis da lezíria ribatejana. O objetivo primeiro foi encontrar um local para «levantar» um abrigo que os protegesse contra as intempéries. Esta procura levou-os até locais privilegiados na Borda d´Água onde se tornava fácil o acesso aos barcos. Só mais tarde os Avieiros construíram as suas «barracas» mais dentro das margens e perto dos campos cultiváveis. Como é óbvio foi nos produtos que a natureza, espontaneamente, lhes providenciava que os pescadores Avieiros encontraram a base da sua alimentação, limitando-se a colher, a pescar e a caçar. Durante muitos anos não praticaram qualquer agricultura. Sabe-se, pelos testemunhos recolhidos, que as ervas mais utilizadas pelas mulheres Avieiras na sua cozinha eram saramagos, cangarinhas, grizandas, pampostos, beldroegas e agriões selvagens.
Os Avieiros no seu dia-a-dia alimentavam-se essencialmente do peixe que pescavam: sável, saboga, fataça, enguia, barbo, robalo, boga, etc. Nas palavras de uma Avieira que entrevistei para a minha tese de mestrado: «A gente só comia saramagos e grizandas e pampostos. Só comíamos coisas dessas. Grizandas é uma erva que deita uma flor amarela e eu gostava muito daquilo. De pampostos eu não gostava muito porque era muito macio. Cangarrinhas, saramagos, fazíamos sopa disso. Os saramagos, o feijão, botava saramagos ou grizandas, botava um bocadinho de toicinho, um bocadinho de morcela, era o conduto, uns baguinhos de arroz e comíamos sempre. Mas nunca deu para mais. Beldroegas, eu comia em salada. Os agriões dantes eram uma coisa selvagem...Eu não me engraçava muito com o saramago, mas era tão importante que algumas pessoas tinham alcunhas de «Saramago». Nunca passámos fome... Porque dantes a gente... Havia muito rabisco, milho e feijão, na lezíria e a gente ia ao rabisco do milho e do feijão e depois tínhamos sempre feijão. E tínhamos azeite. Arranjávamos azeite do rabisco, fazíamos água-pé».
Hoje em dia a alimentação dos Avieiros é muito parecida com a de todos nós, se bem que possam apostar um pouco mais no peixe. No entanto a tradição ainda lhes recomenda algumas restrições… No que diz respeito aos antepassados não podemos esquecer que eram pessoas muito simples e pobres logo com uma alimentação muito «prudente». Do meu ponto de vista eles praticavam a típica dieta mediterrânica: peixe, batatas, todo o tipo de legumes e ervas que existiam ao longo do rio, fruta, azeite e vinho. Estes três últimos provinham do «rabisco» que faziam nos terrenos agrícolas vizinhos das aldeias e durante a noite quando andavam à pesca… Comiam melhor pelos casamentos e no Natal onde já aparece a carne de porco, de borrego e galináceos. Os porcos e os galináceos eram criados por eles mas os borregos eram muitas das vezes «negociados» com os donos dos terrenos em troca da limpeza e conservação das marachas do Tejo e pelo transporte do gado de margem para margem ou para os mouchões no leito do rio.
Das receitas conhecidas, temos: sável frito com açorda de ovas; arroz de sável; enguias fritas, grelhadas e de ensopado; fataça na telha e grelhada; arroz de lampreia; lampreia à bordalesa; lampreia grelhada. Para os dias festivos, ensopado de borrego e assado no espeto; porco no espeto da vara de salgueiro; galináceos corados e de arroz. E na sobremesa destaca-se o arroz doce com canela.
Entendo que a história de um lugar se escreve, também, através da sua gastronomia pois esta constitui um bem cultural quase tão valioso quanto o património material. A culinária Avieira tem sido alvo, ultimamente, de vários eventos espalhados pelas diferentes zonas ribeirinhas e tem vindo a assumir-se como um agente galvanizador de outras atividades, as quais, no seu conjunto, induzem um efeito multiplicador com capacidade para a criação e desenvolvimento de pequenas empresas, em muitos casos de cariz familiar, contribuindo, assim, de forma significativa para a criação de riqueza dentro das comunidades ribeirinhas. Penso que o crescente interesse do turismo pela culinária Avieira poderá ajudar a resgatar tradições prestes a desaparecer e a manter a identidade deste povo.
Deixo aqui o repto a alguém, da área da Saúde ou da Nutrição, para desenvolver uma investigação sobre uma teoria, que eu gostava de ver tratada, que diz respeito à ligação que faço no meu trabalho «Avieiros-Dores e Maleitas» entre a alimentação dos Avieiros, a verdadeira dieta mediterrânica, e a sua longevidade. Durante a minha investigação foi comum encontrar gente Avieira muito idosa, saudável que, na década de 60 do século passado, atingiam com facilidade mais de 80 anos, para ambos os sexos, quando a longevidade média era de 60 anos para os homens e 65 para as mulheres.

(*)Mestre em Educação Social

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