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quinta-feira, 15 de abril de 2010

Portugal …há cem anos

1909 não foi um bom ano para Portugal. Reinava D. Manuel II, com 19 anos, o mais jovem rei da Europa, inesperadamente chegado ao trono em virtude da morte do pai, o Rei D. Carlos, e do irmão, o príncipe herdeiro D. Luís Filipe. Não era, até pela impreparação de educação, opositor à altura do movimento republicano e anticlerical, cuja força interventiva se achava no seu auge.

Em Fevereiro ocorre na capital um comício a favor da República. A 23 de Abril dá-se um sismo de 6,6-6,7 graus da escala de Richter que causa a devastação da zona de Benavente, Salvaterra de Magos, Samora Correia e Santo Estêvão, a morte de 40 mortos e numerosos feridos. Em Julho dá-se uma greve do pessoal dos eléctricos do Porto. Agosto traz a manifestação de 100 000 pessoas exigindo a expulsão das ordens religiosas e José Luciano de Castro, chefe do Partido Progressista, escreve a D. Manuel II. Em Outubro explode uma bomba em Lisboa, junto à igreja de São Luís dos Franceses e no Porto inicia-se a publicação de A Pátria, jornal republicano. Entre 15 e 17 de Dezembro, uma cheia do Rio Douro leva a inundações no Porto e em Gaia.

No mesmo ano, o rei tem oportunidade de conviver com Afonso XIII durante uma visita do rei espanhol (apenas três anos mais velho do que D. Manuel), ao antigo Paço Ducal de Vila Viçosa - agora residência de repouso da família real portuguesa - , e discutir com ele a situação dos dois países ibéricos. A 18 de Junho chega a Lisboa, a convite do rei, a cantora e bailarina Gaby Deslys e consta-se que entre os dois nasce um idílio abruptamente terminado quando a imprensa oposicionista se intromete nos secretos encontros do par. Em Novembro o rei parte para uma viagem oficial a Inglaterra a fim de tratar de um seu possível noivado com a Princesa Victoria Patricia (filha do Duque de Connaught e neta da Rainha Victoria), que nunca chegou a concretizar-se. Eventos sem importância aparente ocorrem a 9 de Fevereiro com o nascimento, em Marco de Canaveses, de uma menina a que foi posto o nome de Maria do Carmo Miranda da Cunha e que, mais tarde, tomaria o nome artístico de Carmen Miranda e a 16 de Julho, em Viseu, um ex-seminarista é aprovado, com 19 valores, no exame do Curso Geral dos Liceus, chama-se António de Oliveira Salazar. Morre Henri Burnay, banqueiro de origem belga, o homem mais rico de Lisboa.

Portugal continua a oferecer atractivos a nacionais e forasteiros. Na capital, o Rossio revelava-se o centro da vida citadina – onde existia o Paço dos Estaus, que alojava enviados estrangeiros, e depois a sede da Inquisição, o Teatro Nacional, era um dos mais conceituados do país. A dois passos ficava o Avenida Palace, o hotel mais luxuoso da cidade. Do outro lado, no Largo de São Domingos, uma pequenina taberna - A Ginjinha – suscitava enorme popularidade. Perto estava a Praça da Figueira, um mercado sob uma armação metálica de quatro torreões que, com os seus 8 000 metros quadrados, ocupava quase um quarteirão. O residente ou o turista, desde que de carteira abonada, deambulavam, alegremente, pelo Chiado e imediações. Uma devoção matinal albergava os crentes nas igrejas no cimo da rua, a do Loreto e a Conceição Nova. Iam os afortunados às compras na prataria Leitão e Irmão, fundada no século XVIII, fornecedora da Casa Real. Ou apetrechavam voluptuosas bibliotecas com compras na Livraria Bertrand (também do século XVIII). A Casa Havanesa notabilizara-se um quarto de século antes por afixar numa tabuleta as mais recentes notícias do mundo, enviadas telegraficamente pela Agência Havas. A Jerónimo Martins oferecia uma grande variedade de requintados vinhos e produtos de charcutaria importados de vários países e do azeite produzido em Vale de Lobos na propriedade de Alexandre Herculano. A loja de modas Ramiro Leão ocupava um edifício inteiro e até o elevador tinha um banquito para reconfortar as cansadas pernas das senhoras da moda: havia, a metro, tecidos de França, fitas, botões e outros artigos. Ao fundo do Chiado, lado a lado, os Armazéns Grandela e os Grandes Armazéns do Chiado, por muitas décadas os dois únicos "department stores" da capital. Quase em frente, a Pastelaria Ferrari era uma das mais afamadas de Lisboa. O café A Brasileira era relativamente moderno, com uma inauguração de colunáveis em 1906. Aí, como no Café Nicola, do Rossio, decorriam tertúlias literárias, encontravam-se os mais conhecidos artistas, liam e trocavam impressões e notas os jornalistas dos maiores jornais lisboetas: O Século e o Diário de Notícias. Perto, situava-se a Cervejaria da Trindade, no antigo refeitório do Convento dos Frades Trinos. Nas proximidades do Chiado, desde 1784, estava o Restaurante Tavares, o mais distinto de Lisboa. Numa rua transversal, quase escondida, ficava o Grémio Literário: ponto de encontro para literatos, jornalistas, políticos e membros da alta sociedade. Pela cidade surgiram cinemas. O primeiro fora o Salão Ideal, na Rua do Loreto, de 1903. Em 1907, apareceram o Salão São Carlos na Rua Paiva de Andrade e o Salão Chiado na Rua Nova do Almada. No ano seguinte, inaugurou-se o Chiado Terrasse, o cinema da elite lisboeta, que sobreviveria por um meio século. Um pouco mais abaixo, junto ao Arco do Bandeira, ficava o Animatógrafo do Rossio, cuja pitoresca fachada se mantém até hoje. No Chiado ficavam também vários teatros: o São Carlos, o São Luís e o Trindade. O futebol assumia a predilecção de todas as classes sociais. Três anos antes o Campo Grande Futebol Club transformara-se no Sporting Club de Portugal, inicialmente vocacionado para o ténis e o atletismo, com um perfil de adeptos mais aristocrático. Com um cunho mais popular apareceu o Sport Lisboa e Benfica, criado em 1908 pela fusão do Sport Lisboa com o Grupo Sport de Benfica. A equipa do Clube Internacional de Football havia sido a primeira a exibir-se no estrangeiro, derrotando em 1907 o Madrid Football Club. No Porto, o Football Club do Porto e o Boavista Football Club competiam para a supremacia futebolística.

Deslocar-se para os bairros periféricos de Lisboa não era difícil. Desde 1902 que não circulavam os "americanos", puxados por mulas e rodando sobre carris, destronados pelos carros eléctricos que surgiram em 1901, com uma carreira entre o Cais do Sodré e Algés. Oito anos depois, a sua rede estendia-se até ao Areeiro, Benfica, Graça e Poço do Bispo. Andar a pé era relativamente seguro. Uma boa parte da cidade estava já dotada de iluminação eléctrica e a Guarda Municipal, a pé ou a cavalo, patrulhava as ruas. Para chegar a pontos altos, como a Baixa ou a área ribeirinha, utilizavam-se os elevadores de Santa Justa, Glória, Lavra e Bica. Há dois anos que táxis (os descendentes das tipóias) se disponibilizavam para servir os mais apressados ou opulentos. Nas duas principais cidades do país, os jovens que aspiravam a uma educação académica acediam às Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto ou ao Curso Superior de Letras da capital, mas a única universidade articulada era a de Coimbra. Existia uma Faculdade de Teologia e uma cadeira de Direito Canónico na Faculdade de Direito. Muitos professores e mesmo bastantes alunos eram sacerdotes. Tudo iria terminar no ano seguinte, quando a nova república laicizaria a estrutura e os rituais da universidade.

Nuvens negras começavam a ensombrar o horizonte político da monarquia mas D. Manuel permanecia alheio à inquietação da elites republicanas, fortemente influenciadas pela Carbonária e pela Maçonaria. Em Julho e Outubro, o rei visita unidades militares, onde verifica que os oficiais lhe mantém o testemunho de fidelidade. Um ano depois, face à eclosão da revolta republicana de 5 de Outubro, o Exército, contrariamente ao que o soberano esperaria, não manifestou significativa resistência. Exilou-se o rei para Inglaterra e jamais tornaria a pisar o solo da pátria que o vira nascer. Perdera o reino sobre o qual lhe haviam ensinado, na sua criação e educação, ganhara um dia a governar, por direito próprio e por direito divino. Era a sua convicção. Mas, o povo, mais uma vez, como o faz continuamente, ao longo da História, cortou-lhe, abruptamente, a sua vontade, confirmando, mais uma vez, que é sua a última palavra, e que a única vontade realmente determinante para fixar o rumo da História é a sua.

Marcava-se assim, pela mão da República, uma nova época para Portugal.

Por: Anabela Melão - Co-fundadora da Academia de Estudos Laicos e Repúblicanos

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