Tinha doze anos quando se deu o 25 de Abril. O meu pai, ribatejano de gema, com um feitio levado da breca, nunca se calou perante a perseguição da PIDE, até porque sendo funcionário da Carris vivia nos entusiasmos do sindicalismo, entre amigos oriundos das massas populares e trabalhadoras empenhados social e politicamente. A minha mãe, mais contida, limitava-se a exclamar face a discussões mais acaloradas que “as paredes têm ouvidos”. Os murmúrios alimentaram a vizinhança e geraram um clima expectante. Na imprudência dos anos juvenis mal retive as ganas de sair à rua, travada pela prudência da minha mãe que achava que “o Diabo anda à solta”. Mais ou menos levados pela mesma inconsciência, o meu pai, a pretexto de “ir ver a ronda”, pega em mim e vamos para o centro urbano. As pessoas acotovelavam-se e sussurravam, ainda no medo de serem ouvidos e observados. Viam-se soldados, canhões e carros da tropa, soldados de espingardas na mão e com os cravos vermelhos cravados na ponta.
A força das palavras tomava a vez do silêncio. Á desinformação e à censura sucedia-se a liberdade de expressão. A rádio falava num golpe de Estado. As canções que passavam assumiam essa liberdade e davam-lhe credibilidade. Homens e mulheres despiam os sentimentos e traziam-nos para a rua sob a forma de risos e lágrimas. Diziam-me que os meus filhos já nasceriam em liberdade e só pensei que eles, tal como eu, também eram aquela criança, ainda pequena, que expunha um cravo encarnado na ponta de uma espingarda.
Percebi que o medo de ser ouvido acabara, que o Poder perdera a unanimidade, que quem estava contra ele não tinha (apesar de poder) de ser comunista, que todos haviam guardado no peito, cada um à sua maneira, a dor de ter a alma aprisionada e a voz calada no peito. Ouvia falar de Caxias, de prisão e libertação e de vinda do exílio. De que a guerra colonial deixava de ser um espectro e que até as mães já não tinham porque chorar quando tinham rapazes, porque não tinham de os dar ao Estado e de os perder em prol de um Estado em que não acreditavam. Havia música, cores vivas, gritos, palavras soltas, e magia no ar.
Foram momentos de esperanças fugazes, tomados forma e contorno, um ano depois, no Liceu Camões quando uma bela rapariga alta e magra entra na aula de Português, com uma pronúncia duvidosa, a contrapor à esgrima exímia da Matemática. Fizemos amizade e tornámo-nos inseparáveis. Passámos os dias nas ruas em plenários e
* Co-fundadora da Academia de Estudos Laicos e Republicanos
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