No mês de Abril há que lembrar, sobretudo às novas gerações, o que era a vida dos homens e das mulheres deste país antes do 25. Um passado que recordo com nostalgia, já que nele passei o tempo da minha meninice. Como posso esquecer os dias em Vale de Cavalos, com os meus avós, Maria Amara e Zé Melão? Ir com a leiteirinha ao leite, com a bilha à bica. Passar as tardes com a Isabel (a fazer trabalhinhos de lã e a tirarmos modelitos para cortes pela Burda, a imitar a moda que eu levava de Lisboa - com a vantagem de ter uma mãe modelista - para irmos as duas aos bailaricos da Casa do Povo), partilhar revistas de romance, brincar com os pequenos Mário e Rui da Maria do Carmo e do Zé Manel (acordeonista/baterista). Ir ao casal ter com a prima Lurdes e à Caniceira, passar os dias com a prima Maria Júlia, o tio e a tia. As tardes passadas nos tomatais e meloais do tio Jorge e da tia Felismina. Que sabores! Tomatada acabadinha de fazer que regalaria as gustativas do Eça e lhe dariam o tom à pena. Maravilhas! Mas, em contraponto, a vida dura que tinham e que a mim, comparando com a de Lisboa - que nunca me atraíu -, ainda hoje me merece um grande respeito. Não me lembro de horas vagas. Era muito dura a vida do homem-camponês do Ribatejo. Labutava de sol a sol em planícies amareladas a perder de vista, com a pele já feita ao calor tórrido ou ao frio agreste e penetrante. A vida das mulheres era particularmente agreste. Esperava-se que se aproximassem em capacidade e resistência dos homens, desprezando que o trabalho de casa lhes pesava, em regra, com uma rigorosa distribuição de papéis. Enquanto os homens passavam uns bons bocados a jogar à malha e a beber uns copos, depois de ter trabalhado um dia inteiro, esperava-as tomar conta dos filhos, às vezes também dos netos, tratar das pequenas hortas e de uns quantos coelhos e animais de capoeira. E, a seguir, aprontar tudo para o dia seguinte. Não guardo recordações de ver sentada à mesa as minhas tias. Eram mulheres pequenas, mas nunca vi quebrarem-se-lhes as forças físicas, a vontade, a genica. Nem a gravidez nem a maternidade eram desculpas para amenizar a rudeza dos seus dias. Trabalhavam até à hora das dores e os filhos nasciam, as demais das vezes, no campo, durante o trabalho, fazendo aí as companheiras de parteiras de improviso. Mas é certo que, embora o papel de chefe de família dominasse a configuração funcional familiar, a mulher ocupava ali uma posição significativamente menos subordinada que noutras zonas do País. Não chegava a ser uma inversão social, concerteza. O homem era o chefe de família e exprimia-o, em público, e, algumas vezes, ostentando esse estatuto de forma violenta. Mas a relação com a mulher e os filhos sofre aqui de caracteres de subversão expressos familiar e comunitariamente, isto é, a imposição dessa liderança era aqui aceite de um modo menos conformista e pacífico: o come-e-cala de tantas outras zonas do país é aqui, diversas vezes, substituído pelo - não menos problemático - come-e-não cala! As mulheres mantinham - dependendo o grau da respectiva moldura familiar - a capacidade de crítica ao despesismo do pai ou do marido, e, algumas, detinham algum controlo na gestão da casa. São as mulheres do campo, camponesas robustas e de pêlo na venta - está a herança justificada - , de sonoras gargalhadas e língua afiada, temperadas da geada e do calor da lezíria. Mesmo quando a geração dos meus pais imigra para a cidade, as mulheres mantém-se afirmativas e autónomas, pelo retrato que traziam do papel da mãe na gestão da lida da casa e do parco património da família. O mito do homem ribatejano tem mais a ver com a tradição rebuscada do campino ou do forcado do que com a dominação deste sobre a mulher. Exterior a uma lógica tradicionalista que impregna numa teia de obrigações as mulheres da burguesia rural mais ou menos enobrecida, estas surgem aqui claramente como mais autónomas, reivindicativas e dispostas a liderar situações sociais e comunitárias diversas. Tais condições fizeram com que as mulheres da geração da minha mãe tivessem um papel predominante na criação dos filhos, por vezes com uma evidente subalternização do marido e do pai. Acho que os homens também se conformaram ao modelo dos pais, já que recordo ambas as minhas avós (a Maria Amara e a Rafaela) como mulheres fortes e determinadas. Criaram-se estruturas mentais substancialmente diferentes doutras regiões do país, e que marcaram a geração da minha mãe, e, com alguma probabilidade, a minha geração e as vindoura. Confesso que ainda hoje tolero melhor homens com uma personalidade menos voluntariosa do que mulheres apagadas, até porque não há registo na família de mulheres mais frágeis do que os homens. Pelo contrário. Recordo aquelas mulheres de fibra, mais afirmativas e teimosas, ostensivas e algo vaidosas, com níveis de auto-estima elevados. Seria uma defesa para aguentar o trabalho duro e para o valorizar dentro e fora de portas, sistematicamente, através do auto-elogio, a raiar a bravata, como mecanismo indispensável de afirmação laboral. A psicologia social era dualista e determinista. Aqui, no Ribatejo, cada um, ainda hoje, é visto como alguém que a si próprio se fez! É que, aqui, mulheres e jovens auferiam salários autónomos, facilmente mensuráveis e cuja contribuição para o agregado familiar foi sempre claramente perceptível e extremamente preciosa, às vezes, aliás, quase ou tão elevados como os do chefe de família. Tal situação laboral, valorizou o seu estatuto. Eram trabalhadoras jornaleiras tal como o homem. Tinham a sua praça todas as semanas, onde iam vender a sua força de trabalho. Aí discutiam preços e condições com capatazes e proprietários. Daí saiam para trabalhar afastadas do marido às vezes por diversos quilómetros, labutando toda a semana com mulheres (ou até com mulheres e homens) de terras vizinhas. Algumas mulheres assumiam-se mesmo, profissionalmente capatazes, habituadas a comandar grupos de trabalhadoras, servindo de porta-voz perante o feitor ou o proprietário, reivindicando remunerações ou condições de trabalho. Essa autonomia notava-se, inclusive, na escolha do cônjuge, a tolerar mal os homens menos capazes, com a qualidade de serem trabalhadores a dominar as suas opções, e, por isso mesmo, apesar da influência familiar dominante, as jovens (tal como os rapazes) tinham tradicionalmente aqui um papel não meramente passivo, mas muitas vezes determinante, até porque, quando casadoiras auferiam já o tal salário, cuja importância para o rendimento do agregado era facilmente discernível. Eram, pois, relativamente frequentes os casos em que a oposição dos pais não chegava para obstar ao casamento indesejado. Os pais ou as rivais são aqui obstáculos a vencer. Nem sempre ultrapassáveis, mas sempre enfrentados de forma decidida e voluntariosa. "Ó minha mãe deixai-me ir Ao bailarico aos Casais Tá lá a minha traidora Vamos ver quem brilha mais!" Também nas actividades lúdicas como as danças (ah! os bailaricos na Chamusca, tocados a gaita de beiços e com pequenos acordeões e concertinas) e os cantares, o papel da mulher surge significativamente valorizado. Tanto nas desgarradas como até em certas danças mais competitivas como o bailarico ou o fandango (e ao contrário do que se pensa), parte considerável das rivalidades locais, explícitas ou implícitas, eram expressas numa perspectiva homem/mulher! E mesmo, ainda solteiras, já a irreverência irrompe em arrobos de desafio: "Minha mãe não consentiu Forte génio de mulher Hei-de falar ao meu amor Todas as vezes que quiser! Foste pedir ao meu pai Sem saber se queria eu Em tudo o meu pai governa Só nisso governo eu!" Não é assim de admirar que não fossem raros os casos de viúvas que mantinham com o seu trabalho a família, ocupando o lugar que, em muitas zonas do país, é exclusivo dos homens. (vd. tema original de Aurélio Lopes, e.s.e., ipsantarém)
As mulheres da minha família sempre tiveram almas de feministas e, curiosamente, isso nunca incomodou os homens. Por isso, digo, ainda hoje, meio a brincar meio a sério, que o meu avô foi o maior feminista que conheci, e, dizem, herdei destas mulheres este meu pêlo na venta. Um mapa genético de que muito me orgulho!
Por: Anabela Melão (nova colaboradora deste jornal)-Co-Fundadora da Academia de Estudos Laicos e Repúblicanos
1 comentário:
Texto maravilhoso.
Com detalhes impressionantes, que devem deixar saudades a quem viveu essa epoca de aperto económico, mas com alma pura. Sem odios, invejas, drogas etc.
Parabéns pelo excelente texto
Enviar um comentário