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domingo, 9 de novembro de 2014

CULTURA AVIEIRA: Manuel do Vau - “Porta-voz da Memória Avieira”

Por: Lurdes Véstia

 Com as considerações realizadas na Crónica de dia 2 de Novembro espera-se ter feito uma aproximação aos princípios enquadradores do património intangível e de alguns conceitos e realidades que são essenciais para perceber o alcance do porquê da criação dos “Porta-vozes da memória Avieira” e do trabalho que temos vindo a desenvolver neste campo.
O património intangível Avieiro existe, é real, e não pode estar associado a algo que já passou, que já nada tem a ver connosco, que de nada serve. Essa visão redutora é uma das razões que leva as pessoas a darem pouco valor ao que existe. Como já se disse, estamos perante algo que podemos definir como fazendo parte de nós e da nossa identidade enquanto comunidade.
É necessário explicar que não estamos apenas a falar do passado, mas do presente e do futuro.
No seguimento da última Crónica vamos agora encetar um ciclo de pequenas biografias, construídas a partir das histórias de vida narradas na 1ª pessoa, de alguns dos que já foram agraciados com o título de “ Porta-Voz da Memória Avieira”.
Para começar o ciclo vamos falar de um homem de aspecto frágil mas que é um HOMEM do tamanho da sua história…Manuel da Cunha de alcunha Vau!!!
Filho de mãe originária da praia da Vieira de Leiria (Avieira) e pai natural da Murtosa (Murtoseiro), Manuel do Vau, nasceu com o apelido “da Cunha”, na localidade do Vau, em plena Lezíria Grande, no ano de 1932.
Em entrevista, realizada no âmbito do Projecto Nacional da Cultura Avieira, “resgatou” memórias de vida, das quais realçamos alguns excertos.
Cresceu entre a pesca do sável no Tejo e a lavoura, tendo começado a trabalhar aos sete anos de idade. Descreve essa labuta com estas palavras “ (…) se o tempo voltasse à época em que eu era pequeno, no que respeita a trabalho, havia quem morresse só de susto”. Mais à frente refere: “Na pesca, a minha função era puxar as cordas das redes. Na agricultura, fiz de tudo: - semeio, monda e ceifa. Parti os torrões que ficam depois de a terra ser lavrada e espantei os pássaros dos campos semeados”. Esta forma de vida tirou-lhe a oportunidade de aprender a ler. “Nunca fui à escola, a mais próxima ficava em Salvaterra, e para lá chegar tinha de andar hora e meia a pé e depois os meus pais tinham dificuldades e precisavam de mim para trabalhar”.
Mais tarde o pai assumiu as funções de capataz e a mãe, cozinheira, preparava o rancho para alguns camaradas de ofício. Para quem chegava só para a campanha do sável a realidade era mais dura. Era sável ao almoço e ao jantar, com pão de milho e era quando tinham. Em Salvaterra havia umas mercearias que fiavam meses até chegar a época do sável. E se a campanha corria mal, havia grandes dívidas. O resto do ano pescava-se enguia, salmão, fataça, barbo, camarão-de-rio. Alguns estão em vias de extinção, mas não é da poluição do rio.

Relata Manuel do Vau que “ (…) é por causa da construção das barragens de Castelo de Bode e de Belver, que impedem os peixes de percorrer o rio. O Alves Redol escreveu num livro que éramos como ciganos do rio. Há quem não goste e até critique mas é porque não viveu esse tempo. Numa noite, dormíamos um bocado em Vila Franca, outro na Vala do Carregado, outro mais acima. Para mim, éramos mais que ciganos do Tejo nesse sentido”.
Anos mais tarde decidiu ir viver para Vila Franca de Xira, onde constituiu família. Hoje em dia, ainda sai para a pesca com a mulher, vai à caça, que é outra das paixões, e nas horas livres vai aos ensaios do Rancho Típico os Avieiros de Vila Franca de Xira do qual é presidente.
Manuel do Vau foi um dos cidadãos de honra galardoados com o Campino d’Ouro, atribuído pelo Município de Vila Franca de Xira, galardão relativo à identidade vila-franquense, em nome dos anos passados no rio Tejo, na pesca e no trabalho no campo. Manuel do Vau é reconhecido nas comunidades Avieiras como um verdadeiro “porta-bandeira”, pois sempre lutou pela preservação e divulgação da cultura Avieira, chegando a servir de cicerone a turistas e alunos de escolas pela história e tradição da comunidade Avieira, identificado e reconhecido como um dos mais fiéis portadores dos saberes desta cultura.
A preservação dos bens culturais intangíveis Avieiros implica a sua transmissão às novas gerações e Manuel do Vau é, na nossa perspectiva, uma das pessoas que integra as condições, consideradas necessárias para a manifestação de certos aspectos da vida cultural imaterial da comunidade Avieira, assim como a pessoa com legitimidade para chamar a atenção para a defesa do património material, que tão ameaçado está.
Estes pressupostos levaram a que o tenhamos reconhecido como um “Porta-voz da Memória Avieira”.

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