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quinta-feira, 10 de julho de 2014

A portuguesa que manda nos alemães: "A Alemanha tem muito mais proteção laboral e social que Portugal




Filha de uma administrativa e de um mecânico de automóveis, ambos com a 4.ª classe, ex-basquetebolista de competição fascinada por comboios, Maria João Guerra passou pela Sorefame/Bombardier. Hoje, aos 39 anos, gere 600 funcionários e um orçamento de dezenas de milhões de euros numa empresa multinacional na Alemanha. O perfil de uma emigrante que diz não pensar trabalhar mais em Portugal mas que desconstrói estereótipos sobre o país de Merkel.
É alta, bem alta - como é suposto ser, como jogadora de basquetebol federada que foi quando jovem (ou mais jovem, vá) - e move-se com a informalidade impositiva que associamos às pessoas habituadas a ocupar o seu espaço sem pedir desculpa, o sorriso fácil em permanente reserva de ironia. É, dir-se-ia, alguém capaz de encontrar motivo de diversão mesmo no que a aborrece - mas não deve ser fácil, em todo o caso, quando a aborrecem; sente-se que se habituou a comandar e a ser obedecida e, por vezes, a fazer show disso. Com plena consciência: "Sou muito teatral."
Como quando, na Bombardier (Maria João Guerra fez o trabalho de final de curso de Engenharia Mecânica na Sorefame, comprada em 2001 pela empresa canadiana, e foi aí o seu primeiro emprego), correu os cacifos todos dos funcionários à procura de álcool, retirando de lá as garrafas com estardalhaço. "Descobri bares autênticos, cervejas, uísque... Também mandei tirar os calendários de mulheres nuas." Faz uma careta.
"O drama, quando fui nomeada para um cargo na Bombardier, foi: "Ai agora quem é que vai levar os inspetores do cliente ao strip?"" Mesmo assim, nomearam-na - facto em que, releva, há que prestar tributo ao seu chefe à época, "o engenheiro Rui Loureiro, atual presidente da Refer, que entre mim e um homem escolheu-me a mim, e depois despediu o meu chefe e pôs-me a chefiar 50 homens, quase todos do PC, que me tratavam por Margaret Thatcher".
Porque uma mulher, prossegue, "é sempre vista com desconfiança para cargos de chefia. Há o preconceito ancestral, essa coisa primitiva de as mulheres não terem andado a matar mamutes. O instinto das organizações é serem sexistas, e o dos homens é protegerem-se uns aos outros. Sempre trabalhei em indústrias muito de homens e as mulheres que se movem neste meios são mais afirmativas. As que chegam a estes níveis, quando comparadas com os homens nos atributos de liderança, são muito mais fortes, mais destemidas."
Dá como exemplo o facto de ter sido ela a fazer os ensaios dos comboios na Bombardier, quando a empresa, em 2002, produziu as composições para o Metropolitano de Lisboa e a linha suburbana do Porto: "Era a chefe da montagem final, e depois da montagem tínhamos de fazer uma série de testes, num espaço muito pequeno. Toda a gente tinha medo de fazer aquilo, menos eu - desde miúda tenho pancada por comboios (a minha mãe trabalhou no metro de Lisboa e eu ia para o Rossio só para ver as composições em manobras) e nunca me diverti tanto na minha vida."
Foi a Bombardier que, em 2006 (depois de passar três anos no Porto por causa do novo metro da cidade), a desafiou pela primeira vez a trabalhar fora do país. Esteve em Bruxelas, Madrid e Berlim. A primeira experiência alemã, a que se segue, desde 2012, a de dirigir a Supply Chain (centro de abastecimento/logística) europeia da TE Connectivity, empresa americana de componentes eletrónicas que "faz mundialmente 13 mil milhões de dólares/ano (perto de 10 mil milhões de euros) e emprega 90 mil pessoas de mais de 50 países." Concorreu e foi escolhida, depois de um regresso a Portugal no final de 2009, por motivos pessoais, vindo assumir a direção de uma fábrica de turbinas eólicas.
Na Alemanha, garante, não sentiu qualquer tipo de reação por ser uma mulher a chefiar uma empresa com uma força de trabalho sobretudo masculina - "Ninguém parece sequer gastar um minuto a pensar nisso, e assim devia ser sempre." - e acaba até de ser promovida: entregaram-lhe em maio a direção de mais uma fábrica com 400 funcionários, a principal fábrica do setor energético da empresa. Mas confrontou-se com outros preconceitos.
"Basicamente os alemães estão intoxicados pela verdade oficial que também ouvimos em Portugal. Que gastámos de mais e agora temos de sofrer. Dizem: "Andamos a pagar para vocês". E eu respondo: "Nós é que andamos a pagar para salvar os vossos bancos, vocês é que ainda não perceberam isso.""
O viés manifesta-se também na retração do investimento estatal: "Há esta ideia de que o dinheiro dos impostos não se pode gastar. O que implica, no caso da Alemanha, com a decisão de fechar as centrais nucleares e a ausência de investimento do Estado em energias limpas - seria necessário investimento estatal na infraestrutura -, ir-se provavelmente acabar a comprar energia a França, que a produz em centrais nucleares."
Ironias em catadupa, mas nenhuma tão aparatosa como a de confirmar a impressão com que ficara na sua primeira incursão no país: "A Alemanha é, do ponto de vista das leis, muito mais protecionista da força de trabalho, porque a empresa é entendida como uma entidade social, até comunitária, que pertence não só aos donos como aos trabalhadores. Há o entendimento social de que os trabalhadores são tão importantes como os patrões. O poder de comissões de trabalhadores e de sindicatos, de facto e no espírito da lei, é muito maior do que em Portugal. Os direitos legais protegem muito mais. Se eu quiser pôr um trabalhador a trabalhar num feriado ou ao domingo, tenho de justificar. Um funcionário público é que decide, com base na lei alemã, se as empresas podem ou não trabalhar ao domingo."
Além disso, garante, "as pessoas têm muito mais garantias sociais e muito mais apoio. O subsídio de desemprego é mais curto, mas a seguir chama-se outra coisa, passa a outros subsídios. O Estado paga a renda de casa, mais um rendimento por cada membro do agregado familiar... A Alemanha tem muito mais proteção laboral e social do que Portugal." Sorri. "E na Baviera, onde estou (vivo em Munique), temos 30 dias de férias, fora os feriados: é a zona com mais feriados na Europa."
A cereja no topo do bolo é, porém, a história de uns portugueses de Viseu que levou para trabalhar no Norte da Alemanha. "Ficaram chocados. Vieram contar-me que os alemães, no turno da noite, iam dormir para a casa de banho, e que eles, portugueses, é que trabalhavam. Que o que se vendia sobre os alemães era mentira." Maria João assente. "Na Alemanha pode estar tudo definido, mas sucede ninguém fazer o que é suposto. Em Portugal o problema é bem diferente: as organizações não dizem às pessoas o que esperam delas."
Entre outros: para Maria João Guerra, que vem a Portugal de três em três semanas para estar com a família e os amigos, é um país "em que não existe meritocracia, e com elites que são capazes de ser as piores do mundo civilizado". E para ela, nascida em novembro de 1974, numa família lisboeta de Alcântara, mãe administrativa e pai mecânico de automóveis, ambos com a quarta classe - "A minha vida não seria possível se não tivesse havido o 25 de Abril" -, que tem o objetivo de "chegar à vice-presidência (mais acima acho que não, preciso de ter contacto com as pessoas)", nada menos do que uma meritocracia serve. 
«DV»

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