Filha de uma administrativa e de um mecânico de automóveis,
ambos com a 4.ª classe, ex-basquetebolista de competição fascinada por
comboios, Maria João Guerra passou pela Sorefame/Bombardier. Hoje, aos 39 anos,
gere 600 funcionários e um orçamento de dezenas de milhões de euros numa
empresa multinacional na Alemanha. O perfil de uma emigrante que diz não pensar
trabalhar mais em Portugal mas que desconstrói estereótipos sobre o país de
Merkel.
É
alta, bem alta - como é suposto ser, como jogadora de basquetebol federada que
foi quando jovem (ou mais jovem, vá) - e move-se com a informalidade impositiva
que associamos às pessoas habituadas a ocupar o seu espaço sem pedir desculpa,
o sorriso fácil em permanente reserva de ironia. É, dir-se-ia, alguém capaz de
encontrar motivo de diversão mesmo no que a aborrece - mas não deve ser fácil,
em todo o caso, quando a aborrecem; sente-se que se habituou a comandar e a ser
obedecida e, por vezes, a fazer show disso. Com plena consciência: "Sou
muito teatral."
Como
quando, na Bombardier (Maria João Guerra fez o trabalho de final de curso de
Engenharia Mecânica na Sorefame, comprada em 2001 pela empresa canadiana, e foi
aí o seu primeiro emprego), correu os cacifos todos dos funcionários à procura
de álcool, retirando de lá as garrafas com estardalhaço. "Descobri bares
autênticos, cervejas, uísque... Também mandei tirar os calendários de mulheres
nuas." Faz uma careta.
"O
drama, quando fui nomeada para um cargo na Bombardier, foi: "Ai agora quem
é que vai levar os inspetores do cliente ao strip?"" Mesmo assim,
nomearam-na - facto em que, releva, há que prestar tributo ao seu chefe à
época, "o engenheiro Rui Loureiro, atual presidente da Refer, que entre
mim e um homem escolheu-me a mim, e depois despediu o meu chefe e pôs-me a
chefiar 50 homens, quase todos do PC, que me tratavam por Margaret
Thatcher".
Porque
uma mulher, prossegue, "é sempre vista com desconfiança para cargos de
chefia. Há o preconceito ancestral, essa coisa primitiva de as mulheres não
terem andado a matar mamutes. O instinto das organizações é serem sexistas, e o
dos homens é protegerem-se uns aos outros. Sempre trabalhei em indústrias muito
de homens e as mulheres que se movem neste meios são mais afirmativas. As que
chegam a estes níveis, quando comparadas com os homens nos atributos de
liderança, são muito mais fortes, mais destemidas."
Dá
como exemplo o facto de ter sido ela a fazer os ensaios dos comboios na
Bombardier, quando a empresa, em 2002, produziu as composições para o
Metropolitano de Lisboa e a linha suburbana do Porto: "Era a chefe da
montagem final, e depois da montagem tínhamos de fazer uma série de testes, num
espaço muito pequeno. Toda a gente tinha medo de fazer aquilo, menos eu - desde
miúda tenho pancada por comboios (a minha mãe trabalhou no metro de Lisboa e eu
ia para o Rossio só para ver as composições em manobras) e nunca me diverti
tanto na minha vida."
Foi
a Bombardier que, em 2006 (depois de passar três anos no Porto por causa do
novo metro da cidade), a desafiou pela primeira vez a trabalhar fora do país.
Esteve em Bruxelas, Madrid e Berlim. A primeira experiência alemã, a que se
segue, desde 2012, a de dirigir a Supply Chain (centro de
abastecimento/logística) europeia da TE Connectivity, empresa americana de
componentes eletrónicas que "faz mundialmente 13 mil milhões de
dólares/ano (perto de 10 mil milhões de euros) e emprega 90 mil pessoas de mais
de 50 países." Concorreu e foi escolhida, depois de um regresso a Portugal
no final de 2009, por motivos pessoais, vindo assumir a direção de uma fábrica
de turbinas eólicas.
Na
Alemanha, garante, não sentiu qualquer tipo de reação por ser uma mulher a
chefiar uma empresa com uma força de trabalho sobretudo masculina -
"Ninguém parece sequer gastar um minuto a pensar nisso, e assim devia ser
sempre." - e acaba até de ser promovida: entregaram-lhe em maio a direção
de mais uma fábrica com 400 funcionários, a principal fábrica do setor
energético da empresa. Mas confrontou-se com outros preconceitos.
"Basicamente
os alemães estão intoxicados pela verdade oficial que também ouvimos em
Portugal. Que gastámos de mais e agora temos de sofrer. Dizem: "Andamos a
pagar para vocês". E eu respondo: "Nós é que andamos a pagar para
salvar os vossos bancos, vocês é que ainda não perceberam isso.""
O
viés manifesta-se também na retração do investimento estatal: "Há esta
ideia de que o dinheiro dos impostos não se pode gastar. O que implica, no caso
da Alemanha, com a decisão de fechar as centrais nucleares e a ausência de
investimento do Estado em energias limpas - seria necessário investimento
estatal na infraestrutura -, ir-se provavelmente acabar a comprar energia a
França, que a produz em centrais nucleares."
Ironias
em catadupa, mas nenhuma tão aparatosa como a de confirmar a impressão com que
ficara na sua primeira incursão no país: "A Alemanha é, do ponto de vista
das leis, muito mais protecionista da força de trabalho, porque a empresa é
entendida como uma entidade social, até comunitária, que pertence não só aos
donos como aos trabalhadores. Há o entendimento social de que os trabalhadores
são tão importantes como os patrões. O poder de comissões de trabalhadores e de
sindicatos, de facto e no espírito da lei, é muito maior do que em Portugal. Os
direitos legais protegem muito mais. Se eu quiser pôr um trabalhador a
trabalhar num feriado ou ao domingo, tenho de justificar. Um funcionário
público é que decide, com base na lei alemã, se as empresas podem ou não
trabalhar ao domingo."
Além
disso, garante, "as pessoas têm muito mais garantias sociais e muito mais
apoio. O subsídio de desemprego é mais curto, mas a seguir chama-se outra
coisa, passa a outros subsídios. O Estado paga a renda de casa, mais um
rendimento por cada membro do agregado familiar... A Alemanha tem muito mais
proteção laboral e social do que Portugal." Sorri. "E na Baviera,
onde estou (vivo em Munique), temos 30 dias de férias, fora os feriados: é a
zona com mais feriados na Europa."
A
cereja no topo do bolo é, porém, a história de uns portugueses de Viseu que
levou para trabalhar no Norte da Alemanha. "Ficaram chocados. Vieram
contar-me que os alemães, no turno da noite, iam dormir para a casa de banho, e
que eles, portugueses, é que trabalhavam. Que o que se vendia sobre os alemães
era mentira." Maria João assente. "Na Alemanha pode estar tudo
definido, mas sucede ninguém fazer o que é suposto. Em Portugal o problema é
bem diferente: as organizações não dizem às pessoas o que esperam delas."
Entre
outros: para Maria João Guerra, que vem a Portugal de três em três semanas para
estar com a família e os amigos, é um país "em que não existe
meritocracia, e com elites que são capazes de ser as piores do mundo
civilizado". E para ela, nascida em novembro de 1974, numa família
lisboeta de Alcântara, mãe administrativa e pai mecânico de automóveis, ambos
com a quarta classe - "A minha vida não seria possível se não tivesse
havido o 25 de Abril" -, que tem o objetivo de "chegar à
vice-presidência (mais acima acho que não, preciso de ter contacto com as
pessoas)", nada menos do que uma meritocracia serve.
«DV»
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