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segunda-feira, 10 de março de 2014

Mulheres de Abril

Nascemos ainda no Estado Novo

Por: Isabel Faria
Vimos pais, irmãos, amigos, vizinhos, serem presos pela PIDE ou partirem para a guerra colonial.
Algumas ainda chegámos a aprender a ler nas entrelinhas da censura.
Ouvimos o Zeca, o Luís Cilia, o Adriano, o Sérgio, o Manuel Freire, o Fanhais e o Zé Mário, às escondidas dos homens de gabardina cinzenta e dos delatores tão cinzentos como eles, com o gira-discos baixinho e a alma aos gritos.
Quando escutámos pela primeira vez a Pedra Filosofal percebemos que o mundo poderia pular e avançar nas nossas mãos de meninas ou de jovens mulheres. E, muitas de nós, decidimos logo aí que não iríamos desistir. Era uma decisão tomada mais com coração do que com a razão, a maioria das vezes. Como devem ser tomadas as decisões importantes, pensávamos então.

Quando Abril chegou saímos à rua. Embebedámo-nos de sonhos, de gritos, de cravos, de canções, de bandeiras e de gente.

Iamos para os campos, lá fazia-se a revolução. Para as fábricas, lá fazia-se a revolução. Para as escolas, lá fazia-se a revolução. Discutíamos politica em casa. Em casa fazia-se a revolução. Saíamos à rua. A revolução era na rua.
Tomámos partido. Tomámos as rédeas das nossas vidas. Ao som da marcha do MFA muitas de nós saíram pela primeira vez à rua, de noite, sem os pais, e ao som da Grândola demos o nosso primeiro beijo. Fizemos amor, no meio duma discussão sobre Lenine e sobre os SUV. Casámos enquanto cantávamos a Internacional.
Saímos ou saíamos de casa dos nossos pais e na bagagem levávamos a foto do Che, o Capital do Marx, umas camisas aos quadrados, uma mala cheia de sonhos, de amores e de certezas. Acanhávamo-nos em dizer amo-te..mas amávamos sem amanhã. E para sempre.

Depois vimos chegar Novembro. Impotentes.

Seguiram-se anos de desencantamento. E de desesperança. Muitas de nós ainda se foram encontrando em alturas de sonhos e de lutas. Ou de memórias e de perdas. Encontrámo-nos na luta pela despenalização do aborto. Na campanha de Maria de Lurdes Pintassilgo. Nas manifestações por Timor ou contra a Invasão do Iraque. Nas marchas do 25 de Abril ou nos 1º de Maio. No Coliseu a cantar com o Zeca. Ou na partida do Zeca.
Nos partidos de Esquerda..ou nas tentativas de trazer Esquerda aos Partidos.

Mas muitas de nós foram-se afastando da rua. Os anos do apogeu do neo-liberalismo fez acreditar a muitas que ter uma casa significava casa para todos. Ter um emprego, significava ter trabalho para sempre.
Ter os filhos na universidade significava ter futuro para eles.

E hoje estamos aqui. Temos 40 e muitos, 50 ou 60 anos. Desempregadas ou com trabalho precário. Ou a trabalhar cada vez com menos direitos e menos dignidade. Temos filhos, companheiros, amigos e familiares sem trabalho. Perdemos casas e perdemos lutas. As ruas desocuparam-se de gente a lutar e ocuparam-se de gente sem vida e sem abrigo.

Desamámos e voltamos a amar. E desamámos de novo...
Com os anos fomos perdendo pais, amigos, pessoas que nos fizeram.
À pobreza que a austeridade nos trouxe, juntámos a solidão onde nos foram deixando os que foram partindo.

Olhamos os nossos filhos, algumas já os nossos netos, e sentimos que falhámos.

Mas, teimosamente, sabendo que podemos estar a travar a nossa última e mais decisiva luta, a luta por sermos dignos do passado que vivemos, a gente olha em frente, enche o peito de ar, lembra os passos dados com muitos que já partiram, olha companheiros, amigos, filhos e netos, bem nos olhos, olhamo-nos ao espelho, em vez de cabelos brancos vemos flores no cabelo, limpamos lágrimas e cansaços...E vamos.

O sonho ainda comanda a vida. E muitas de nós, a maioria de nós, acredito, não lhe apetece nada morrer. Não desistimos. E tomamos esta decisão, de novo e ainda, muito mais com o coração do que com a razão.

2 comentários:

Anónimo disse...

Pois é...mas a maioria continua a votar contra ela mesmo, esta é uma realidade à vista de todos.Há excepção de Alpiarça e Benavente o resto do defunto-Ribatejo assim continuam, por mais manifestações que façam o que conta é o voto.

Anónimo disse...

Um texto pode não ser uma obra literária (não é o caso deste..bem elaborado), mas contando factos históricos, verdadeiros, vividos por quem escreve, é sempre muito belo.Este texto sim, é a voz que muita gente que desejaria gritar aos sete ventos o que lhe vai na alma. Não o fazem por comodismo, falta de oportunidade, desânimo, ou quem sabe pensar diferente, ou pensa igual ha 40 anos mas não quer demonstrar ,por pressões ou desilusões. Mas tudo pode mudar nas nossas vidas, forma de pensar, de agir. Mas ha uma coisa que ninguém pode apagar: a HISTORIA. Os factos não mudam, apenas podem ser contados de maneiras diferentes. Quem viveu essa época não vai mais esquecer o que se passou. Para seu bem ou para seu mal