Armando Ferreira |
Memória justificativa
Conjunto escultórico de homenagem
AO POVO DE ALPIARÇA
Sr. Presidente do Município de
Alpiarça Dr. Mário Pereira, Srs. Vereadores, Sr.
Secretário de Estado da Administração
Local Dr. António Leitão Amaro, Srs.
Convidados, Srs. Alpiarcenses.
Quase quinze anos depois desta
escultura estar pronta para ser colocada a público,
quero manifestar aqui publicamente,
que nada acontece por acaso.
Este novo espaço, a praça dos paços do
concelho, foi projetada à medida para
receber esta representação em
escultura de homenagem AO POVO DE ALPIARÇA.
Nada podia acontecer de melhor para
receber esta obra, que identifica a história, ou
seja, o passado e o presente e passa a
ser obrigatoriamente o cartão de visita do nosso
concelho.
Valeu a pena os quinze anos de
cativeiro, por isso, reafirmo que nada acontece por
acaso.
Quero pedir neste momento um minuto de
silêncio em memória de um grande amigo
e companheiro, o Vereador Mário
Peixinho, que já não está entre nós e desde a primeira
hora até à última manifestou sempre o
grande desejo de trazer esta escultura à luz do dia.
Bem-hajam.
Nesta faixa de terra física e cultural
que o Tejo tem, as pessoas se habituaram
durante séculos, a organizar as suas
vidas.
Sol, Água e Terra conjugam-se aqui em
simbiose perfeita, que faz desta região a
zona mais fértil do território
nacional. Tempos geológicos foram acumulando, numa
interminável tarefa de milénios, o
maior espaço de abundância.
Chama-se Ribatejo, a vastidão da
lezíria, os campos de aluvião, ondulado por
vinhedos e olivais e salpicado por
povoações dispersas oriundas de vários pontos do
país, aqui se fundiram: Gaibéus,
Barrões, Serranos, Bimbos, Avieiros,…pessoas que
precisaram de matar a fome. Uns
partiam e outros iam ficando. Somos descendentes
desses.
Antes das máquinas tomarem as grandes
tarefas agrícolas, era a braços e pé descalço
que tudo se fazia.
Era os tempos do capataz e dos ranchos
contra a fome;
Era o tempo do trabalho de sol a sol;
Era o tempo de algum pão e pouco
conduto;
Era o tempo da pobreza de um avio;
Era o tempo do role dos assentos de
fiados;
Era o tempo da praça de jornas;
Era o tempo das mãos e pés com gretas;
Era o tempo de selar o contrato de
trabalho na taverna e honrado com a molhadura.
Neste universo, como tudo na vida
evolui, nesta obra em escultura faço representar
esse povo que passou uma vida de
sofrimento.
Semeando ternura e amizade
Adubando a terra, com sorriso e
canções
Lembrando a noite que não tarda
Chegando os invernos de mágoa.
Século XX, a aurora começa a romper,
o escuro das ideias.
Vai surgindo um espaço em luz.
De sol a sol, brilhando nas costas
curvadas
com jeito de aquecer
o que já está queimado.
Um tamanhão de anos de corpo suado.
Terra, torrões e leivas
tanto vos tenho olhado,
com esta enxada tão grande,
com força de besta
mais regos te faço
e te dou de beber,
no teu ventre escaldante
os teus filhos irão nascer.
Numa pausa de trabalho,
vou comer este bocado de pão
que me sai deste saco ressequido,
igual a este torrão.
E vou pensar, pensar, pensar,…
Não há forma de o amanhã ser
diferente,
Quem sabe! É preciso pensar, pensar,…
Não quero ser só a besta de trabalho.
Um homem é um homem, e não um cão.
Descansa enxada grande
estou cansado.
Sai da minha cabeça boné, preciso de
ar novo.
Tenho o cabelo encharcado de suor,
Preciso da cabeça fria.
O olhar fixo em coisa nenhuma, e o
pensamento perdido
por entre tantas coisas que queria ver
realizadas.
As memórias de tristeza e desilusão,
Trabalho duro, sendo a sua riqueza a
família,
Comendo desejos
Com telhados de nada
paredes de palha
e portas abertas para os deuses.
Chegou o dia de refletir.
As garras que o fere e que o mata,
não é a doença nem a fome,
mas sim outros homens.
Os tais deuses, que encomendam
conveniências de cegueira à PIDE,
para continuarem a ser donos
da injustiça.
Sim. Se houve um quartel da PIDE em
Alpiarça,
isto diz a todos que o homem do campo,
não era só uma besta de trabalho,
também foi pensador,
e passou a haver muitos pensadores
e reuniões clandestinas,
sopradas por ventos noturnos
senhas prensadas nos colarinhos das
camisas
papel mastigado e engolido por um
susto
segredos enviados por nuvens
encontros debaixo de árvores sem
sombra
códigos nos olhares
códigos nas vozes
portas que se abrem à força
gritos de mulheres, de tamancos
batendo
no seixo das ruas, iluminadas pela lua
dos deuses.
Estes homens de ontem também foram,
os capitães de Abril
É verdade que muitos já partiram.
E quem somos nós?
Não somos os seus descendentes?
Somos com certeza e moramos e
trabalhamos, na mesma terra,
Somos todos vizinhos. Todos.
Esta obra tem o sentido de fazer
representar o povo do passado e presente, pois
estaremos para sempre ligados à terra
que faz germinar, tudo o que é necessário para a
sobrevivência de todos nós. Será
sempre, mas sempre uma terra agrícola.
Para os Alpiarçolhos, Alpiarçeiros e
Alpiarcenses, o trabalho duro e árduo, não era
obstáculo para deixar de pensar, por
isso, houve…
tantas prisões, tantos clandestinos,
tanto cansaço.
não tenho outro jeito
vou pensar, pensar,…
talvez, amanha me saia esta dor no
peito
quem sabe, talvez eu consiga
alargar, o aço da enxada que herdei.
Obrigado.
Armando Ferreira
«Fonte:CMA»
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