ALVES REDOL - Publicado no BADALADAS de 17 JUNHO 2011
NO CENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO
ALVES REDOL, ESCRITOR DO POVO
Designação apropriada para um homem que escreveu no meio do povo e para o povo, num tempo em que se trabalhava por salários de miséria e não havia protecção social. Que os mais velhos ainda hoje recordam como “o tempo da fome”.
Alves Redol nasceu em Vila Franca de Xira em 1911 e viveu na carne a dureza daqueles tempos. Ainda experimentou o sonho de fazer vida em África mas logo regressou. Desiludido mas disposto a enfrentar o salazarismo que se afirmava contra as liberdades e a democracia. Homem decidido, sentiu o apelo da escrita como arma de denúncia e de libertação. Adere ao Partido Comunista e envolve-se no MUD – Movimento de Unidade Democrática. Firme, ideologicamente coerente, traça o seu caminho literário na senda do chamado neo-realismo com uma obra fundadora, fulgurante, publicada em 1939, GAIBÉUS, onde retrata o inaudito sofrimento do trabalho nos arrozais do Ribatejo, em pleno verão, pelos ranchos de camponeses vindos das Beiras.
Redol criou o seu próprio método de escrita: ia viver para o meio das gentes que retratava, ouvindo, observando, na partilha total das dificuldades. Foi assim que escreveu AVIEIROS, esses nómadas do Tejo que habitavam nos seus barcos varinos ou em barracas de madeira nas margens do grande rio. Ou UMA FENDA NA MURALHA, sobre os pescadores da Nazaré. Ou ainda o ciclo de romances sobre o Douro, em que descreve a faina duríssima nos socalcos da vinha.
Homem da borda d’água, será no cenário do latifúndio ribatejano que Alves Redol erguerá a sua obra-prima literária, BARRANCO DE CEGOS, publicada em 1961. Aí aplica todos os seus recursos para descrever a queda de um mundo aparentemente imutável e a ascensão de novos personagens num tempo de violentas mudanças.
Redol deixou uma obra que vale a pena revisitar, tanto pela realidade social que descreve como pela belíssima prosa em que se exprime.
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O que resta da aldeia avieira do Patacão (Margem esquerda do Tejo, concelho de Alpiarça)
Barco avieiro no Tejo
Nos anos 60 do século XX a praia da terra onde nasci – Alpiarça – era nos areais do Tejo, junto à aldeia avieira do Patacão. Por cinco escudos alugávamos um barco a remos para uma tarde de sol e água. Não sabíamos ainda que as famílias que ali viviam eram descendentes dos pescadores da praia de Vieira de Leiria, emigrados no início do século XX de uma costa desabrigada para um rio largo, rico em sável, fataças e sabogas. Sabemos hoje que este fenómeno de migração interna deu origem a uma população com características específicas, os Avieiros, “nómadas do rio”, dispersos por aldeias na margem do Tejo e do Sado. Hoje pouco mais resta que ruínas e abandono. Por isso se constituiu há alguns anos um movimento tendente a propor a Cultura Avieira como Património Nacional. E nos dias 17 e 18 deste mês de Junho decorrerá em Santarém o 2º Congresso da Cultura Avieira, com a finalidade de sublinhar o valor turístico-cultural deste original património histórico e sociológico.
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por Méon
Retrato de Alves Redol
de Ary dos Santos
Porém se por alguém não foi ninguém
cantou e disse flor canção amigo
a si o deve. A si e mais a quem
floriu cresceu cantou lutou consigo.
Homem que vive só não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo com todos ficar vivo.
Nado-vivo da morte. É isso. É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
Forjar o conteúdo pela forma:
marrar até morrer. E dar por isso.
cantou e disse flor canção amigo
a si o deve. A si e mais a quem
floriu cresceu cantou lutou consigo.
Homem que vive só não vive bem
morto que morre só é negativo
morrer é separar-se de ninguém
e contudo com todos ficar vivo.
Nado-vivo da morte. É isso. É isso.
Uma espécie de forno de bigorna
de corpo imorredoiro que transforma
em fusão o metal do compromisso:
Forjar o conteúdo pela forma:
marrar até morrer. E dar por isso.
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VIVER COM OS AVIEIROS
Alves Redol foi cronista do povo trabalhador, dos assalariados agrícolas e pescadores, de cuja existência sofrida jurou dar testemunho. Fiel ao seu método de trabalho, Alves Redol meteu-se a viver algumas semanas com os pescadores do Tejo numa aldeia avieira, a Palhota, donde resultou o belíssimo romance AVIEIROS. Explicou no prólogo:
«Mas voltemos à minha experiência espontânea, logo depois premeditada. Muitos chamavam recolha, talvez impropriamente, a esta busca de contacto humano; outros apoucaram o processo, impropriamente também. Na verdade, não se recolhem os materiais da vida; vivem-se. Ou inventam-se. Mas escolhem-se as vivências ou as invenções quando um escritor sabe para que vive. E como lhe importa viver.»
Quem for hoje à Palhota, lá encontrará uma lápide evocativa desta vivência de Redol, sinal de gratidão dos habitantes da aldeia para com o homem que perpetuou na escrita a memória de um duro quotidiano de luta pela sobrevivência.
Casa onde viveu Alves Redol, na aldeia avieira da Palhota (margem direita, concelho do Cartaxo)
Lápide comemorativa, dedicada a Alves Redol* * *
Trexo de "AVIEIROS"
FOLHAS DE OUTONO NO TEJO
Ela sentara-se no banco de remar e partira antes dos outros. Quase ao fim da tarde, o Tejo pusera-se mais calmo; parecia que o saveiro navegava por cima de um vidro colorido que a proa cortava de mansinho, deixando-o em estilhaços que se recompunham com os restos do sol. (…)
Mal entraram no túnel das árvores que enchem as duas margens, apareceu um vento áspero, a sacudir tudo; até assobiava nos troncos e nos ramos. E corria tanto, e assobiava tanto, espantado, quem o espantara? que as folhas começaram a cair aos cachos, fugindo algumas, juntando-se depois, num torvelinho, indo e regressando num corropio, que Olinda Carramilo parou de remar e ficou queda no banco, meio tonta, como o Tóino, que já bebera mais de meio garrafão de vinho e ainda não parara de cantar.
E num repente, quando o vento garanhão fugiu para a Lezíria à procura das éguas, as folhas que revoluteavam como pintassilgos tontos caíram de chapuz sobre a vala da Casa Branca e deixaram tudo alagado das cores do Outono, um nadinha triste, mas tão sorrateiro, que o Tóino da Vala não se moveu no fundo do barco. Amarelas, doiradas, vermelhas, quase de fogo, ardidas e ainda ardentes, verdes, cúpricas, verde-cré, verde-montanha, verde-gaio, verde-negro, ocres, castanho-queimado, e vermelhas, acesas, fogaréus a arder, as folhas do arvoredo da vala tombaram, de repente, sobre o corpo do pescador vagabundo e vestiram-no a esmo de todas as cores que havia nesse mês.
Deslumbrada, Olinda Carramilo ergueu os olhos para aquela chuva fantástica que também lhe escorria pelos ombros e engrinaldava a cabeça.
Depois tudo se quedou num grande silêncio, como se as árvores ficassem a ver o que delas fugira com o vento.
(in: AVIEIROS, A. Redol; Livros de Bolso Europa-América, nº 214, p. 117))
Pescadores avieiros no Tejo, anos 60 do séc. XX
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