Os dois meses que João Céu e Silva passou a bordo da Boa Esperança a caminho do Brasil deram origem a um livro.
João Céu e Silva |
OS DIAS EM QUE O DN CONTOU: Para celebrar
os 500 anos da descoberta do Brasil pelos portugueses, a Boa Esperança fez-se
ao mar junto à Torre de Belém e seguiu a rota de Pedro Álvares Cabral. A bordo
dessa réplica de uma caravela de Quinhentos seguia o repórter do DN. E assim,
de início de março de 2000 até finais de abril, o DN publicou um “diário de
bordo” onde desde os temporais até às acrobacias dos golfinhos, passando pela
observação das estrelas, tudo era contado aos leitores.
“A partir das 10 horas o dia fica escuro e o horizonte coberto de nuvens. Ao fim da manhã temos de voltar a descer as velas porque estamos cercados de chuva forte e ameaçadora. Passamos o dia todo nisto, num sobe e desce de panos e de molhas constantes.” Escritas a 10 de abril de 2000, estas palavras nunca passaram do bloco de João Céu e Silva para as páginas do DN, porque nos jornais (na versão papel) há certa ditadura gráfica e horários a cumprir e o repórter optou nos dois mil caracteres que podia enviar nesse dia da caravela Boa Esperança por contar o que andava a tripulação a ler, desde o Caderno Vermelho de Paul Auster a O Cruzeiro do Snark de Jack London, passando por Peregrinação. Este último adequava-se bem ao espírito de aventura necessário para recriar 500 anos depois a viagem de Pedro Álvares Cabral que levou à descoberta do Brasil.
“A partir das 10 horas o dia fica escuro e o horizonte coberto de nuvens. Ao fim da manhã temos de voltar a descer as velas porque estamos cercados de chuva forte e ameaçadora. Passamos o dia todo nisto, num sobe e desce de panos e de molhas constantes.” Escritas a 10 de abril de 2000, estas palavras nunca passaram do bloco de João Céu e Silva para as páginas do DN, porque nos jornais (na versão papel) há certa ditadura gráfica e horários a cumprir e o repórter optou nos dois mil caracteres que podia enviar nesse dia da caravela Boa Esperança por contar o que andava a tripulação a ler, desde o Caderno Vermelho de Paul Auster a O Cruzeiro do Snark de Jack London, passando por Peregrinação. Este último adequava-se bem ao espírito de aventura necessário para recriar 500 anos depois a viagem de Pedro Álvares Cabral que levou à descoberta do Brasil.
Foi complicado subir a bordo da Boa Esperança, caravela construída dez anos antes nos estaleiros de Vila do Conde e réplica quase ao milímetro dos barcos que os portugueses usaram para descobrir o mundo. Quase, porque a lei obriga a que não se confie apenas nas velas e por isso há motor. João Céu e Silva, que viveu no Brasil, teve de lutar contra ventos e marés (o dito aqui aplica-se) para concretizar o seu projeto de contar a viagem que celebraria os cinco séculos de Cabral.
Nem o comandante o queria nem a direção do jornal se mostrou de início entusiasta com uma reportagem que implicava ausência de dois meses. E se o espírito jornalístico acabou por triunfar entre quem decidia no jornal, já a bordo a boa vontade tardou a chegar; só quando a tripulação percebeu que o “Diário de Bordo” publicado no DN transformou a viagem iniciada a 8 de março num acontecimento seguido por milhares.
“Às 5 e 10 da manhã vejo a minha primeira estrela cadente da viagem. Minutos depois, vejo a segunda. Vale a pena estar no quarto das 5 às 8 horas, quanto mais não seja pelo espetáculo que é ver o céu estrelado. Ontem, a abóbada celeste parecia uma sessão do planetário tal era a clareza com que se via as estrelas, as constelações, Júpiter e Saturno. O comandante João Lúcio e o Vítor [Vajão] passaram vários minutos de dedo apontado a explicar-nos onde se localizavam Oríon, Cassiopeia, Cão Maior, as Plêiades, Touro, as Ursas Maior e Menor, enquanto a Lua brilhava sobre o mar”, publicou o DN a 10 de março, descrevendo uma noite algures entre Lisboa e o Funchal. O repórter, que cumpria as obrigações de tripulante, começava a ganhar a confiança de quem mandava a bordo. Ajudava a isso não só o relato que fazia, mas também o seu esmero em cumprir o quarto, turno de trabalho que tanto podia ser ir ao leme como descascar batatas.
“Hoje foi um dia especial porque fomos invadidos de golfinhos por todos os lados”, lê-se no “Diário de Bordo” de 19 de março, já perto de Cabo Verde. “Logo pelas 10 horas cerca de 100 fizeram um cerco à caravela, fazendo evoluções à nossa volta enquanto batíamos com as mãos no casco para chamar a sua atenção. Umas duas dezenas acompanharam-nos durante mais 20 minutos, fazendo cada um a sua brincadeira. Saltavam sobre o mar, mergulhavam e voltavam o dorso para cima, ziguezagueavam enquanto os mais afoitos roçavam a quilha à proa do barco”, prossegue o relato de um jornalista com escassa experiência de mar, aliás como quase todos os tripulantes, 18 sempre, que ao longo do percurso foram cedendo lugar e só dois fizeram Lisboa-Rio de Janeiro-Lisboa.
Na escala em Mindelo, três tripulantes ficam de guarda à caravela, os restantes vão descobrir Cabo Verde. A rota segue o máximo possível a de Cabral. E João Céu e Silva conta a “vida social da tripulação”, que “tem sido intensa”, como que a descansar do bater das ondas e dos enjoos: “Ao jantar, a tripulação esteve reunida num restaurante onde se ouviram os ritmos de mornas e coladeiras.” É preciso não esquecer que a viagem, iniciativa da Aporvela, sempre teve a intenção de celebrar a lusofonia. E havia brasileiros entre os marujos.
A 1 de abril, nas páginas do DN, uma nota: “Devido a dificuldades de comunicação com a caravela Boa Esperança não nos é possível publicar o habitual diário de bordo. Contudo, o DN soube que está tudo bem a bordo e que a viagem prossegue normalmente.” O que aconteceu? O telefone-satélite do barco, único meio para enviar um e-mail, foi falhando as tentativas de contactar Lisboa. E quando por fim teve sucesso, passava da meia-noite e o jornal estava a ser impresso.
“A nossa distância de terra não ultrapassa as 90 milhas e já estamos dentro das águas territoriais brasileiras”, publica o DN a 12 de abril. Primeiro Salvador, onde a Boa Esperança fará furor apesar das polémicas no Brasil sobre a celebração de Cabral, e por fim o Rio de Janeiro. A 13, o repórter fala sobre as três mulheres a bordo, assunto que “sempre foi tabu nas naus e caravelas portuguesas”. Cristina Ferreira desmistificava: “Ser mulher não acarreta dificuldades e a vida comunitária aqui permite-me ir ao leme enquanto os homens fazem as tarefas domésticas.”
Nem o comandante o queria nem a direção do jornal se mostrou de início entusiasta com uma reportagem que implicava ausência de dois meses. E se o espírito jornalístico acabou por triunfar entre quem decidia no jornal, já a bordo a boa vontade tardou a chegar; só quando a tripulação percebeu que o “Diário de Bordo” publicado no DN transformou a viagem iniciada a 8 de março num acontecimento seguido por milhares.
“Às 5 e 10 da manhã vejo a minha primeira estrela cadente da viagem. Minutos depois, vejo a segunda. Vale a pena estar no quarto das 5 às 8 horas, quanto mais não seja pelo espetáculo que é ver o céu estrelado. Ontem, a abóbada celeste parecia uma sessão do planetário tal era a clareza com que se via as estrelas, as constelações, Júpiter e Saturno. O comandante João Lúcio e o Vítor [Vajão] passaram vários minutos de dedo apontado a explicar-nos onde se localizavam Oríon, Cassiopeia, Cão Maior, as Plêiades, Touro, as Ursas Maior e Menor, enquanto a Lua brilhava sobre o mar”, publicou o DN a 10 de março, descrevendo uma noite algures entre Lisboa e o Funchal. O repórter, que cumpria as obrigações de tripulante, começava a ganhar a confiança de quem mandava a bordo. Ajudava a isso não só o relato que fazia, mas também o seu esmero em cumprir o quarto, turno de trabalho que tanto podia ser ir ao leme como descascar batatas.
“Hoje foi um dia especial porque fomos invadidos de golfinhos por todos os lados”, lê-se no “Diário de Bordo” de 19 de março, já perto de Cabo Verde. “Logo pelas 10 horas cerca de 100 fizeram um cerco à caravela, fazendo evoluções à nossa volta enquanto batíamos com as mãos no casco para chamar a sua atenção. Umas duas dezenas acompanharam-nos durante mais 20 minutos, fazendo cada um a sua brincadeira. Saltavam sobre o mar, mergulhavam e voltavam o dorso para cima, ziguezagueavam enquanto os mais afoitos roçavam a quilha à proa do barco”, prossegue o relato de um jornalista com escassa experiência de mar, aliás como quase todos os tripulantes, 18 sempre, que ao longo do percurso foram cedendo lugar e só dois fizeram Lisboa-Rio de Janeiro-Lisboa.
Na escala em Mindelo, três tripulantes ficam de guarda à caravela, os restantes vão descobrir Cabo Verde. A rota segue o máximo possível a de Cabral. E João Céu e Silva conta a “vida social da tripulação”, que “tem sido intensa”, como que a descansar do bater das ondas e dos enjoos: “Ao jantar, a tripulação esteve reunida num restaurante onde se ouviram os ritmos de mornas e coladeiras.” É preciso não esquecer que a viagem, iniciativa da Aporvela, sempre teve a intenção de celebrar a lusofonia. E havia brasileiros entre os marujos.
A 1 de abril, nas páginas do DN, uma nota: “Devido a dificuldades de comunicação com a caravela Boa Esperança não nos é possível publicar o habitual diário de bordo. Contudo, o DN soube que está tudo bem a bordo e que a viagem prossegue normalmente.” O que aconteceu? O telefone-satélite do barco, único meio para enviar um e-mail, foi falhando as tentativas de contactar Lisboa. E quando por fim teve sucesso, passava da meia-noite e o jornal estava a ser impresso.
“A nossa distância de terra não ultrapassa as 90 milhas e já estamos dentro das águas territoriais brasileiras”, publica o DN a 12 de abril. Primeiro Salvador, onde a Boa Esperança fará furor apesar das polémicas no Brasil sobre a celebração de Cabral, e por fim o Rio de Janeiro. A 13, o repórter fala sobre as três mulheres a bordo, assunto que “sempre foi tabu nas naus e caravelas portuguesas”. Cristina Ferreira desmistificava: “Ser mulher não acarreta dificuldades e a vida comunitária aqui permite-me ir ao leme enquanto os homens fazem as tarefas domésticas.”
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