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domingo, 23 de novembro de 2014

CULTURA AVIEIRA: Isabel do Touco

Após a morte do marido continuou na sua vida pelas margens da Vala de Alpiarça na apanha da enguia, da carpa, do barbo, dos lagostins de água doce, entre outras qualidades de peixe. Deixou de andar na faina com 82 anos, não deixando no entanto o seu trabalho na agricultura.


                                                             Por: Lurdes Véstia

Isabel nasceu a 31 de Dezembro de 1927 na aldeia de Vale de Cavalos, é descendente de pescadores da Praia da Vieira. Aos 18 anos casou-se com um individuo de descendência também Avieira, e foi morar para a Barreira da Bica para casa dos sogros, onde ficou durante 3 anos. Após esse período foi morar para a aldeia dos Avieiros do Touco, em Alpiarça., onde viveu e criou os filhos. O seu tempo era passado na vala de Alpiarça, na pesca.
Após a morte do marido continuou na sua vida pelas margens da Vala de Alpiarça na apanha da enguia, da carpa, do barbo, dos lagostins de água doce, entre outras qualidades de peixe. Deixou de andar na faina com 82 anos, não deixando no entanto o seu trabalho na agricultura.
A narrativa de Isabel mostrou que o processo de falar de si envolveu tomadas de decisão que foram facilitadas pelas circunstâncias, pois na medida em que foi aumentando o vínculo de confiança entre a entrevistadora e a informante a narração foi ganhando contornos mais pormenorizados.
A morada de família: LV: Viveu dentro do barco?
I: Naaaa, mas no tempo que ia-mos para a pesca do sávele dormíamos dentro do barco e quando já tinha os mês filhos eu dormia com o mê marido dentro do barco porque ia-mos pescar durante a nôte e os mês filhos dormiam com os mês sogros na areia das praias do rio debaixo de toldes.
Mais à frente: (…) Esta barraca onde eu agora vivia é que já era de cimento nos pilares. A barraca era de madeira. Era tudo de madeira de freixo, de salgueiro, de oliveira. Uma vez uma cheia escavou um pilar meu e ficou a minha casa assim toda de lado. Tive que fugir pra casa de uma vizinha. Quando a água vazou...porque a gente ficava trancadas e não podíamos sair nem nada…e tinha aquelas vinhas e tinha aquelas covas, a gente chamava-lhe as alvercas, depois na podíamos passar pra vir para cá.
Relações homem-mulher e interpessoais: Sabe-se, por testemunhos diversos e pela leitura de Alves Redol, que a mulher Avieira tinha uma enorme força interior, coragem e dinamismo, mas que em simultâneo se submetia à autoridade do patriarca da família, o homem. Isabel sentiu alguma relutância ao abordar este tema, talvez porque lhe fosse difícil expor a intimidade.
LV: Como era a vida entre marido e mulher?
I: Não levei muita tareia…embora algumas vezes tenha apanhado, uma das tareias que eu me lembro foi uma vez por causa da nha filha que quando era piquena foi brincar com um molhe de canas que o mê marido tinha preparado para as redes e ela derrubou, quando vi e ao pensar que ela se tivesse aleijado pois as canas tinham as pontas afiadas corri para ela e ele queria-lhe bater como eu na deixei acabei por levar eu…mesmo em frente à nha irmã e ao mê cunhado mas apesar disso não fizeram nada pra impedir que ele me batesse.
Tirando isso sempre nos demos bem pois ele era bom prós filhos pois nunca deixou que lhes faltasse comida.
Nas relações com os outros: LV: Como eram as vossas relações com os de fora da comunidade?
I: Sempre nos demos bem com os agricultores e com os senhores das quintas e mesmo com as pessoas da vila, embora, uma vez por outra, nos desentendíamos com os donos dos terrenos vizinhos mas era só por causa dos miúdos pois eles iam roubar fruta das árvores que os agricultores tinham nas terras mas para além disso sempre nos demos bem com todos.
As práticas da vida diária: referem-se às descrições que Isabel fez sobre o seu dia-a-dia, as ocupações, os momentos de descanso, entre outros. É pela análise deste tema que se pode perceber as referências que inevitavelmente Isabel faz sobre a vida de antigamente. Aliás durante toda a narrativa foi possível perceber estas insinuações.
(…) A gente passou... ouça lá! E a gente andar a pescar, com ondas muito grandes, para ver se ganhava alguma coisinha... que era fome ... pra ganhar alguma coisinha de comer... pra ir no outro dia a Alpiarça a pé, pelo campo afora...fazíamos tudo estrada acima a pé, com os cestos à cabeça (Figura 7), carregados de peixe e íamos vender à praça, sempre a pé, sempre a pé. Pra lá e pra cá. Dantes não havia carros nim nada como há agora. Nim havia dinheiro para eles...passámos muito no Tejo.
Ou ainda: “Então na me lembro!? Eu ia grávida e dantes usava-se o fato branco, né? E quando foi a nha mãe para ir comprar-me o fato, ainda me lembro tão bem, o senhor que estava a vender os fatos pôs um verde e um cor-de-rosa muito clarinho. E eu queria o outro que era mais escurinho. Eu estava grávida. Vai, uma senhora que lá estava disse “ai, a menina é tão novinha, leve este!”, que era o cor-de-rosa. Mas lá tanto teimou que eu trouxe o fato cor-de-rosa”.
Insistindo na referência aos tempos idos: (…) Havia muita alegria e amor. Agora na há. É só raivas e invejas... velhaquices... na ouvem a palavra de Deus. Na têm amor, na têm nada a ninguém. Raivas e invejas. Cada um para si. Dantes os pescadores eram... Havia um que estava no hospital... nós somos os ciganos do mar... ia tudo ao hospital pra ver... “Ai Jasus!, ai Jasus!”... Agora esteja um, esteja dez, esteja catorze, só as famílias os vão a visitar. Na há unidade nenhuma.
Os trabalhos no campo e no rio: este tema refere-se aos afazeres de Isabel ao longo da sua história de vida, os medos e ansiedades. Refere-se também ao seu papel enquanto mulher no seu grupo social.
Durante a narrativa facilmente se percebe que Isabel assumiu, desde tenra idade, trabalhos considerados árduos mas bem aceites socialmente entre a comunidade Avieira: “Eu tinha 11 anos e já andava com uma quarta de água à cabeça e a trabalhar a sachar favas, a ganhar a 25 tostões e as mulheres a 5 escudos e eu no meio das mulheres... andava uma mulher, andava uma cachopa... andávamos assim em carreirinha e não tínhamos ordem de alevantar. E ósdepois quando a gente via as mais velhas, coitadas porque também queriam alevantar-se um bocadinho, se a gente se alevantasse amergunçavam a gente pra baixo. Logo! Havia uma capataza, que era danada dum corno pra puxar pelas mulheres. É verdade! E apanhar grama... era no lezíria do lado de lá do Tejo... a gente morava do lado de cá, mas a gente tinha que ir passar ao barco pra lá tirar grama…tão pequenita... logo de madrugada”.
Os medos: LV: Teve algumas vezes medo de andar na pesca durante a noite?
I: Confesso que tive medo. Uma das vezes que tive medo foi numa nôte em que fomos pescar pra um sitio na vala de Alpiarça que era proibido pescar “mas tínhamos de arriscar” e enquanto andávamos a deitar as redes vimos uma luz na margem e começámos a ouvir vozes…tivemos de recolher as redes e fugir saindo da vala, abandonando o barco e fugindo a pé pelo campo levando o mê marido as redes todas às costas e eu atrás dele até chegarmos a nossa casa.
Mais à frente: A enfrentar as ondas...disso é que eu tinha muito medo. Quando era a largar as redes, pra pescar, vinham aquelas ondas e ter que ter o barco direito a favor do vento... vinham às vezes ondas que até entravam dentro do barco. Tinha muito medo.
Uma vez comigo... o mê filho aqui entre os joelhos, deitado e a dormir, e o hóme era só assim: “endreita o barco”, “endreita o barco”, eu ia largar, mas eu que tinha medo de ir atrás das redes quando as largasse. Tinha muito medo. Veio uma onda e ficou tudo raso de água. Depois meti o filho debaixo da proa, onde estavam as mantas molhadas e eu e mais o mê homem, o resto da noite, foi sempre acima e abaixo, abaixo e acima, todos molhadinhos.
E ainda: “Quando éramos mais novos eu e o mê hóme andávamos a pescar à sociedade com uma irmã minha…um dia a gente vai então assim “a gente ferramos aqui a vara e dormimos aqui um bocadinho até a Lua se pôr”, porque às escuras apanhava-se mais peixe. Vai daí deitámos no barco. A gente tinha uns tóldezinhos, a gente botava aquele arco e depois botava os tóldes na proa (Figura 8), tapávamos com um lençol, por causa da maresia ou da chuva, estávamos deitados, eu já estava a dormir e só o mê marido é que na estava, estava acordado ainda, mas na deu por ela... e ouviu catrapum... era a nha irmã. Atirou-se ao Tejo. Estava a sonhar que a filha tinha caído ao Tejo e ela atirou-se à água para a agarrar “ai a minha menina, ai a minha menina” vai o mê marido é que lhe pôs a mão quando ela ia para baixo do barco “Oh hóme, oh hóme!”, vai agarrou-a a trouxe-a “ah! cachopa porque é que fizeste isso?” “ai! estava a sonhar com a minha menina, que caiu à água, e eu atirei-me ao Tejo para agarrá-la!”. Era uma vida difícil. Mas olhe, eu pensei sempre em morar no Tejo. A nha irmã é que não. Ela dizia “não me fales nisso! Só as cheias que eu lá passei!”. Eu, quando os filhos eram piquenos, e pra remar mais descansada, amarrava-os à nha cintura com uma corda, assim já sabia quando eles se mexiam…
No capítulo do trabalho, pode-se perceber que Isabel também assumiu trabalhos considerados femininos, trabalhos que utilizam habilidades qualificadas socialmente, como próprias das mulheres: delicadeza, habilidade, destreza manual e motricidade fina: “Quando era pela Páscoa a gente sabia bordar, fazíamos uns saquinhos, todo bordado, com bicozinhos tudo à volta e raminhos. Entregávamos aos rapazes e eles compravam as amêndoas, metiam dentro daqueles saquinhos e é que davam à gente. A gente jogava aos compadres e às comadres. Ainda hoje que já somos velhinhos dizemos “Eh compadre”. O rapaz levava amêndoas e a rapariga dava-lhe um lenço de assoar”.
É relevante comentar que Isabel, durante a entrevista, recorreu várias vezes a fotos que tinha na sua posse, como se sentisse necessidade de ver as pessoas das quais falava e com as quais tinha convivido.

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