Por: Lurdes Véstia
Mulheres Avieiras da Azinhaga, Golegã, de regresso a casa depois da venda do peixe
A Barreira
da Bica, na foz do rio Alviela, encontra-se a cerca de dois quilómetros de Vale
de Figueira, no concelho de Santarém, local onde se estabeleceu, durante
décadas, uma colónia de pescadores Avieiros.
Ao local
chamaram Barreira da Bica, pelo facto de existir, como hoje ainda existe, uma
fonte de água pura vinda da encosta. A aldeia chegou a ser constituída por 28
barracas, adega, um forno comunitário (ainda existente) e os galinheiros que
apenas guardavam os coelhos, visto que as galinhas viviam em plena liberdade.
Por variados factores, como a poluição do rio Alviela, foi-se dando o abandono
da aldeia até à desertificação total. A aldeia foi morrendo, sem gente, com as
casas abandonadas, e com os barcos e apetrechos ao abandono no areal.
“Elizabete
da Bica”
Elizabete
nasceu em 1932, em Salvaterra de Magos, quando os seus pais, andavam na pesca
do sável, mas foi em Vale de Figueira (Barreira da Bica) que foi registada.
"Vivíamos numa casa de madeira com estacas ao pé do rio Alviela".
Uma
pescadora que bem cedo conheceu a dureza do trabalho no campo, desperdiçando a
infância para ajudar a família de nove irmãos. Aos 21 anos casou com J. C., que
também trabalhava no campo, e decidiram abandonar o trabalho na terra que não
lhes pertencia e ir ao chamamento do Tejo, seguindo o exemplo dos pais.
Passaram
muitas dificuldades "Foi uma vida muito dura". "No verão, dentro
do barco, era um calor insuportável. No inverno, um frio de gelar".
Engravidou
um mês depois de casar e até dar à luz, continuou a viver dentro do barco no
rio. Depois do parto, passou um mês em terra com o bebé nos braços, para criar.
Quando o filho completou 6 anos de idade, Elizabete e J. decidiram mudar de
vida e assentar em terra. O menino tinha que ir para a escola e o barco
tornava-se cada vez mais pequeno e inóspito para servir de lar. Além disso, a
saúde de Elizabete exigia cuidados acrescidos pois havia contraído uma doença
pulmonar.
Construíram,
com as suas próprias mãos, uma barraca de madeira na aldeia Avieira da Barreira
da Bica, à beira Tejo, com o pouco dinheiro que conseguiram amealhar na dura
vivência de pescadores.
Tiveram
mais um filho, que em bebé revelava uma saúde débil. O casal não abandonou o
barco. Continuou a dedicar-se à pesca e entregar-se á cansativa faina do
dia-a-dia. Uma tempestade destruiu-lhes a barraca onde viviam e tiveram que
construir outra.
Mais
tarde, depois dos filhos criados, J. decidiu comprar um pedaço de terreno e
construiu uma casa em Vale de Figueira. A vida melhorou significativamente e
Elizabete não mais deixou a sua casa. Passados anos J. C. morreu afogado no
Tejo ao tentar salvar das águas o velho barco, num dia de fortes chuvadas.
A história
de Elizabete
A narração
de “Elizabete da Bica” foi marcada por momentos de alguma confusão no discurso,
no entanto as memórias foram surgindo e a história revelou-se plena de
significações. Percebe-se que a história de vida de Elizabete se confunde com a
de tantas outras mulheres que vão substituindo o papel de filha pelo de mãe e
mais tarde pelo de avó. A história de Elizabete fala de uma mulher com fortes
vínculos ao lado feminino da família, herdando dele o seu papel de cuidadora e
zeladora das maleitas e mal-estar da família: (...) a nha mãe e a nha avó é que
ensinavam isso tudo à gente (…) Já não consigo arrebanhar... depois rezava-se
um Padre Nosso e uma Avé Maria... a nha avó sabia muito bem rezar. Ela era da
Vieira, elas iam à missa e sabiam a dótrina. Ela sabia todas as rezas e sabia
todas as coisas... Sabia o pé retorcido, o cóbrão... mas isso ainda eu faço
também...”
Já no seu
papel de avó, Elizabete, conta a história de uma mulher envelhecida partindo da
comparação e consideração entre o passado e o presente: (…) Já tenho dito a uma
neta que aí tenho, com 12 anos, “na tua idade eu já estava farta de trabalhar,
em casa e tudo” . A nha mãe ia fazer a venda dela e eu fazia tudo em casa. Eu e
outra irmã minha”.
O
dia-a-dia narrado por Elizabete resultou na construção de três fortes grupos
temáticos: as relações familiares, as práticas religiosas e o papel da mulher
dentro da comunidade.
Relações
familiares: Elizabete socorreu-se de vários personagens da família para falar
de si. Elizabete fala da morte para designar as relações de parentesco com a
pessoa morta e para se relacionar com ela: “Não conheci os mês avós porque o
pai da nha mãe morreu afogado no mar e o pai do mê pai...quando o mê avô morreu
a nha avó ficou grávida do mê pai. Nem ele conheceu o pai. A nha mãe era C. e o
mê pai M. Eu sou prima carnal do mê marido. O mê sogro chamava-se A. C. e a nha
sogra era E. F., ela não sabia o nome porque ficou sem mãe de pequenina e toda
a gente a chamava de E. P. Mas ela na era E. P., era E. F. A nha mãe deixou uma
irmã na Vieira. Na Vieira ainda lá há família. A família do mê pai era B”.
LV: B. há
também em Alpiarça, no Patacão...
E: É tudo
da nha família...
Ou ainda:
(…) os pescadores de antigamente eram todos da Vieira... pois!... o mê avô
morreu afogado lá no mar... foram treze de uma vez que morreram e o mê avô
coitado nunca mais apareceu. Ópois a nha avó veio cá para o Tejo. Elas faziam
uma safra lá no mar da Vieira e depois quando estava melhor cá vinham pra cá.
Ópois acabaram por ficar, ficou cá ela e pronto! ficou cá muita gente. A nha
avó ficou viúva com cinco filhos e ópois casou outra vez com outro homem...
pronto! E era assim...”
Outro
aspecto observado foi a comparação que é feita, durante o decurso da narração,
entre os personagens da família e os demais: “O mê pai gostava muito de
trabalhar e a nha mãe. Foi fome, mas a gente nunca passámos fome. Lá ao pé da
gente havia muita gente que passava fome. Porque o mê pai e a nha mãe iam
vender o peixe a Alcanhões, outra vez a Alpiarça, era onde calhava. E quando a
nha mãe vinha, já tínhamos almoçado. Ê arranjava uns peixes, a gente tínhamos
sempre uns roibaquinhos, arranjava aquilo de caldeirada, outras vezes sopas e
batatas. Pronto!, a gente comíamos e criámos bem. Os mês irmãos era tudo gente
grande, eu é que era mais baixa. Nunca passámos fome. Porque o mê pai era muito
corajoso, mas havia daqueles que não se tiravam ali de pé de casa... pois! Eu
sei!”
Este
método de falar de si através das relações familiares evidencia a construção da
sua identidade dentro destas relações. Ora semelhança ora diferença, Elizabete
vai-se colocando como mãe, filha, irmã e neta dependendo das relações que
mantinha com os personagens que com ela conviviam.
No quadro
das relações interpessoais Elizabete falou ainda na sua história deviolência
doméstica, na falta de respeito nas relações entre homem e mulher, situação que
era sentida e consentida em muitos lares Avieiros.
LV: Mas
quem mandava lá em casa?
E: Dentro
do barco eles respeitavam a gente e até gritávamos ordes…mas em casa…olhe lá…
antes se uma mulher fosse a buscar o home à taberna, ia a levar porrada até
casa….era uma ofensa muito grande!!!
LV: Eram
as mulheres sempre que vendiam o peixe? Eram elas que geriam o dinheiro em casa
ou eram os homens?
E: Eram
elas. Eram as mulheres.
LV: E
quando os homens precisavam de dinheiro para qualquer coisa?
E: Eles
pediam às mulheres, pra fazer a barba...
E depois:
LV: Mas
havia muita violência doméstica?
E:
Ora…havia aquelas que levavam todos os dias !!! O mê hóme deu-me muitas vezes e
às vezes até me dizia “Ó Elizabete amanhã levas mais!!! Porque sempre que te
bato no outro dia matas mais uma galinha” ...Era assim…felizmente já não é.
Ao falar
sobre a violência doméstica, sentida por tantas mulheres Avieiras, Elizabete
espelha a divisão entre géneros, no qual o homem é reconhecido como tendo mais
poder social do que a mulher que consegue aumentar o espaço para gerir as suas
tarefas sociais mas não mudar a sua identidade.
A mulher
Avieira revela-se-nos assim como indefesa, aceitadora das agressões, resignada
e votada ao silêncio.
Práticas
religiosas: Durante toda a narrativa Elizabete deixou bem clara a importância
das práticas religiosas entre a comunidade Avieira. As crenças/ritos revelam
aqui, positiva ou negativamente, a integração social, a influência dos laços
familiares, os valores vigentes, a relação comunitária, entre outras. Na origem
destas expressões populares pode-se, de facto, descobrir a consciência dos
limites humanos perante forças transcendentes e a necessidade de dar sentido,
apoio e organização à vida humana, sobretudo em alturas de perigo ou nos
momentos cruciais da vida. Espelham, portanto, os anseios, os sofrimentos e as
esperanças dos pescadores Avieiros.
LV:
Nessa altura não frequentavam muito a igreja, como é que era?
E: Na, na
frequentávamos.
LV: Vocês
nunca iam à missa?
E: Nunca
íamos lá. Chegaram a ir lá fazer missas campais, na sei se já era casada ou se
ainda era solteira. Até lá iam padres que andavam ainda no Seminário fazer
missas campais. Iam lá ao pá da barraca do mê compadre Albertino fazer as
missas campais.
LV:
Tirando as missas campais, nem por mortes, nem por casamentos, nem por
nascimentos os padres lá iam...Todos eram baptizados?
E: Todos.
LV: O
senhor padre costumava vir aqui?
E: Na,
vinha a gente lá.
A
actividade piscatória e a ajuda divina: A actividade piscatória é o ser e o ter
destas comunidades e o seu fruto dependia quer do esforço de cada um quer
também da vontade dos “deuses”. O dia-a-dia era marcado por actos e atitudes
que remetiam, muitas vezes, para o transcendental. Num universo povoado de
medos e angústias, as forças malfazejas assumiam um papel importante.
Para
enfrentar os temporais e as trovoadas recorriam a “receitas” verbais. Estes
ritos evocam, comummente, acontecimentos sobrenaturais ligados à origem do
mundo ou da própria religião.
Isto nos
demonstra Elizabete:
LV: Vocês
conheciam algumas daquelas rezas, a Santa Bárbara ou a S. Gerónimo?
E: Cantava
muito isso...a nha avó é que ensinava isso tudo à gente...
Santa
Bárbara se alevantou
Seu pé
direito calçou...
Nosso
Senhor (ou Nossa Senhora) encontrou...
Onde vais
Santa Bárbara?
Vou
espalhar a trovoada...
Santa
Bárbara bendita
No céu
está escrita...
Durante a
entrevista e pelas palavras de Elizabete, ou até nos silêncios, sente-se que,
em alguns momentos da sua vida, sentiu cansaço pelos diversos papéis sociais a
que esteve obrigada. Este cansaço deveu-se sobretudo à dupla jornada de
trabalho que Elizabete executava, pois para além das vulgares actividades
domésticas, ela assumia o trabalho fora de casa e principalmente o trabalho
nocturno da actividade
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