Por. Lurdes Véstia (*)
Continuação da Crónica anterior…
Coutadas de pesca
Muitas cartas de coutadas, quintas, rios e ribeiras, revelam que o usufruto do produto originado beneficiava quem as recebia, senhores de menor ou maior condição, clérigos (mosteiros ou ordens) e a permissão podia estender-se a cidadãos, homens e mulheres, a quem o rei fazia mercê, sendo esta, também, uma forma de assegurar o peixe nas suas mesas. Em determinadas zonas, a pesca estava interdita a quem não possuísse uma zona coutada. Estas, além de proporcionarem alguma diversão também forneceriam abundante pescado.
No século XIV Alpiarça (Alpearça) já existia enquanto povoação. O seu povoamento terá começado logo a seguir à Reconquista.
Uma das referências que se conhecem sobre Alpiarça diz respeito ao seu rio Alpiarça ou Vala Real, que no reinado de D. João I era coutada real. Nesta época era muito comum os monarcas gozarem de terrenos próprios para pescar e caçar e todos os outros para o fazerem teriam que obter autorização. Quer D. João I quer o cónego de Viseu, Luís Eanes, tinham coutadas em Alpiarça para o seu “desenfadamento” e obtenção de algum pescado.
Em relação ao rio Alpiarça, sabe-se que em 1436, o povo do concelho de Santarém faz uma petição ao rei D. Duarte, para que naquele rio se pudesse pescar com covões, pois pescar com cana não era rentável. O rei cede ao pedido e autoriza a utilização dos covões em determinadas zonas do rio.
Pelos artigos apresentados nas Cortes de Évora de 1436, entende-se que na coutada real de Alpiarça era possível pescar com cana apesar de ser proibido pescar com outros aparelhos, D. Duarte entendia que não convinha que o “laurador leixar de laurar e pescar a cana e quando mujto tomaua dous bordallos e que seia nossa mercee que husem como sempre husarom no dicto Rio os lauradores”. O conteúdo do documento evidencia que pescando com cana se recolheria menos pescado do que utilizando outras técnicas de captura, e, por outro lado, satisfazia-se o povo que assim teria livre acesso ao rio.
Passados três anos o concelho de Santarém, nas Cortes de 1439, volta a manifestar-se contra a coutada real do rio Alpiarça, alegando que os rios são livres e que todos deveriam ter direito de pescar, o povo manifestava-se contra alguns poderosos que o proibiam de pescar no tempo do sável.
Só o regente D. Pedro irá declarar livre a pesca no rio Tejo (1442), no entanto o rio Alpiarça continua a ser coutada real em algumas zonas. O rio Alpiarça aparece sempre associado à abundância de peixe talvez dai a razão pela qual era considerado coutada real. O padre Cardoso referencia a fertilidade das terras junto às margens do rio Alpiarça, assim como a abundância de peixe, nomeadamente fataças e barbos. O rio Alpiarça mantém-se como coutada real desde o reinado de D. João I até ao século XVIII.
As coutadas revelavam-se assim como uma mais-valia para os seus proprietários, pois constituíam uma fonte de rendimento e garantiam a entrada fresca de pescado, especialmente nas alturas em que o seu consumo era imposto religiosamente.
Receituário medieval de peixe de rio
Não sendo o peixe o alimento preferido na Idade Média, existiam, contudo, espécies mais apreciadas que outras. A pescada, o salmão, o congro, o linguado, a lampreia, o sável e o solho eram dos mais apreciados para levar às mesas dos mais notáveis e abastados, quedando para o povo o pescado mais vulgar, como a sardinha. Pela leitura dos documentos, utilizados para a elaboração deste trabalho, verificou-se que o peixe se servia nas mesas medievais, pelo menos, nos dias em que se proibia religiosamente o uso de carne, que o tornou um sinal de extirpação, purificador das desobediências terrenas. Na mesa dos mais pobres, para além da observância do mandamento cristão, as espécies piscícolas, porque mais acessíveis, desempenhariam um vital papel na alimentação.
Da leitura de Saramago constata-se que a única receita de peixe presente no Livro de cozinha da Infanta D. Maria (1538-1577), composto de 67 receitas distribuídas em quatro cadernos e mais seis receitas avulsas, é a seguinte: “Tomarão a lampreia lavada com água quente, e tirar-lhe-ão a tripa sobre uma tigela nova, porque caia o sangue nela, e enrolá-la-ão dentro naquela tigela e deitar-lhe-ão coentro e salsa e cebola muito miúda, e deitar-lhe-ão ali um pouco de azeite e pô-la-ão coberta com um telhador; e como for muito bem afogada, deitar-lhe-ão muito poucochinha água e vinagre, e deitar-lhe-ão cravo e pimenta e açafrão e um pouco de gengibre” O processo de arranjar e temperar a lampreia está bem detalhado, mas, depois não se especifica o modo de confeção.
Pode-se inferir que o facto deste livro de receitas ser dedicado à confeção de pratos para mesas ricas, explique a presença da lampreia como única receita de peixe, pois, esta espécie era, na realidade, das mais apreciadas. No tempero da lampreia utilizavam-se variadas ervas aromáticas e especiarias, principalmente a partir do século XVI, abundavam na confeção de pratos, bem como se recorria a uma grande variedade de condimentos num só prato. Neste, registam-se quatro, podendo ainda ser utilizadas mais, à semelhança do que acontecia com a preparação de pratos de carne. Nas mesas abastadas as especiarias seriam substituídas por ervas aromáticas, gorduras e frutos, como por exemplo: laranjas azedas, limões, salsa, coentros, cebolas, azeite, manteiga, o sal e o vinagre.
Carta probatória do pagamento de dívidas deixadas pelo bispo de Coimbra, D. Estevão, que Afonso Esteves, despenseiro de D. Pedro I e criado de Estêvão da Guarda, saldou em nome deste último e por ordem do monarca, com a data de 3 de Novembro de 1357, onde se refere o pescado do rio Tejo.
Sabham quantos estes stromentum vyrem e leer ouvyrem que en presença de mim Afonso Dominguiz publico tabellion de Sanctaren e das testemuynhas que adeante som scritas Afonso Steveez, criado de Stevam da Guarda, eychon de nosso senhor el Reyen logo e em nome do dicto Stevan da Guarda, per mandado de nosso senhor en Rey assy como conteúdo enhûasa carta e de Pero Giraldiz alcayde e de Pedre Anes de Pavha e de Vaasco Perez alvaziis de Sanctarem presente Reymonde Anes e Meen Perez testamenteyros de Don Stevam bispo que foi em Coimbra.
(…) Item pagou a Clara Zagala três libras e meio que jurou que lhydevya o dicto bispo per razom de congros secos que dela conpraron quando o dicto bispo chegou passado a Sanctaren. (…) Item pagou a Maria Salgada quinze soldos per três sovaes que disse per juramento que lhi filharon pêra o dicto bispo a cinco soldo o saval.
(…) Das quaes cousas sobredictas o dicto Afonso Steveez pedio a mim Affonsso Dominguiz tabellion de suso dicto que lhy desse huum stromentum de como pagava estes dinheiros per outoridade da carta de d’el Rey que ende mostrava per que os mandava pagar e per mandado dos dictos alcayde e alvaziis assy como Pero Galego porteyro do concelho da docta vila de Sanctaren disse da parte deles.
Fecto foy esto en Sanctaren nas casas que forom do dicto bispo, três dias de Novembro, Era de mil e trezentos e cinquenta e sete anos.
Os que presetes forom: Meen Perez, Reymonde Annes e Pero Galego porteyro e outros. Eu Afonso Dominguiz publico tabellion de Sanctaren a estas cousas presente fuy e a rogo do dicto Afonso Stevveez este stromentum scrivy e en el este meu sinal pugy.»
(*) Mestre em Educação Social
Sem comentários:
Enviar um comentário