Por: Lurdes Véstia (*) |
A bateira do Tejo, que, como já referimos, é uma descendente das bateiras da Ria de Aveiro, levada para sul pelos pescadores ílhavos e varinos, continua a ser construída nos mesmos moldes e pouco alterou a sua forma original, tendo sido muito bem adaptada pelos Avieiros, que a aplicam na pesca do rio, com a arte de emalhar (tresmalho) e os galrichos, para as enguias.
A forma de estar na vida, que caracterizava os pescadores oriundos da Praia da Vieira, era desconhecida, incompreendida e socialmente marginalizada pelas comunidades locais e por isso os pescadores migrantes, nos primeiros tempos de fixação nas margens do rio Tejo, tiveram de enfrentar a animosidade dos autóctones, vendo-se obrigados a viver nos seus barcos apelidados de bateiras, (1) saveiros (2) e também nas caçadeiras (3)“maneirinhas” nas palavras da pescadora Avieira D.Júlia Rabita (que foi por mim entrevistada), onde guardavam todos os haveres e os instrumentos necessários à pesca.
Barcos que eram o seu principal instrumento de trabalho, o seu lar, o meio de transporte e tantas vezes a tumba. Ali trabalhavam, dormiam e comiam. Era também ali, no barco, que muitas vezes pariam e eram criados os filhos.
A D. Júlia Rabita relata assim esta vivência: (…) metíamos na caçadeira alguma comida, o bastante para um ou dois dias, um colchão, uma manta, pratos e talheres e chegados a um mouchão, armava-se o tolde no barco e era lá que a gente vivia nesses dias. Na proa do barco era colocado um “tolde” que atravessava “ da borda avante (...)” para servir de abrigo contra as borrascas. Era aqui que toda a família dormia, depois da emparadeira (4) era colocado um monte de areia para que pudessem fazer lume e que servia de cozinha, a parte da ré era a oficina da pesca e onde se guardavam as redes”.
Um universo reservado, com leis próprias.
Aliás o apodo de “cigano do rio” pode também ter surgido pelo facto de os Avieiros, enquanto sociedade fechada e repudiada, terem o hábito de casar entre si, como forma de protecção, para se defenderem e para preservarem o conhecimento que tinham das artes da pesca e para darem continuidade às suas tradições, tal como praticam as comunidades de etnia cigana.
A pesca
Pesca-se de noite, o arrais (homem), por norma é quem lança a rede e a camarada (mulher) é quem rema o barco aquando do lançamento. Depois a rede é recolhida para o interior do barco, pelo casal, com as duas cordas juntas de modo a fazer um saco.
Cada rede possui, para além de uma nomenclatura diferente (5) que os Avieiros “concebem”, uma forma e função distinta consoante o tipo de peixe a que se destina. As redes podem ser de arco, de arrasto, de alvitana ou redonda. Os panos de rede diferem na dimensão da sua malhagem - malha mais basta, para o peixe de menor porte, malha mais aberta, para o de maior.
Distinguem-se quatro tipos de redes de arco: o buturão, o galricho, o traquete e a nassa que se diferenciam pelo seu tamanho, pelos diâmetros das malhas e das bocas dos arcos.
As redes de arrasto, chincha e varina, são as redes de maior dimensão e de forma quadrangular.
As redes de alvitana ou redonda: o sabugar, a branqueira, o estremalho e a savara que se diferenciam pelo tamanho das malhas.
A confecção das redes, arte de sabegar, envolve o casal de pescadores.
1-As bateiras são barcos que têm a proa e a ré em bico e viradas para o céu, medindo entre quatro metros e meio a sete metros. Por fora, são pintadas a pês negro e por dentro com cores vivas e alegres. A vantagem em terem a proa e a ré em bico é o manuseamento do próprio barco.
2-Os saveiros são pequenas embarcações de cinco a sete metros de comprimento, utilizadas pelos Avieiros que faziam os seus próprios barcos para garantirem o sustento da família e que têm vindo a desaparecer dando lugar aos barcos de fibra. Resta, apenas, aos pescadores, as memórias e a transmissão dos legados a outras gentes.
3-As caçadeiras são embarcações tipicamente portuguesas que eram também conhecidas por canoas do alto. Existiam em quase todos os centros de pesca do país, embora com maior relevância para sul do Cabo da Roca e costa algarvia. Tinham muita quilha à ré, proa arredondada e popa de painel.
4- Emparadeira é um amparo de madeira que faz de suporte para os pés quando se rema
5-
Bemhaja, Carla V. Pereira, Nomenclaturas Avieiras da Pesca – Caneiras, Tese de Licenciatura, ESES, Santarém, 2010.
(*) Mestre em Educação Social
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