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sexta-feira, 4 de julho de 2014

Uma crónica que merece ser lida e....digerida


...Estava aqui a pensar com os meus botões...na vida e nesta coisa da política e, como sei que o meu amigo é também dado à leitura e à reflexão, envio-lhe aqui uma crónica publicada no DN por Baptista Bastos, que merece ser lida e...digerida:

Enviado por: português PT
"Vivemos de felicidades pequeninas, e inventamos esses instantes com a intuição secreta de que são precários e fugazes. Pouco temos a que nos pegar. Os amigos ou aqueles que estimamo...s vão-se embora, para outros sítios ou para sempre, encerrando o anel que parecia ligar-nos. Agarramo-nos, com o desespero de quem nada tem a perder e nada tem a ganhar, ao gosto de uma palavra, a um sonho ou, até, a um jogo de futebol, criando a ilusão de que somos felizes. Mas é sempre uma felicidade pequenina, e nós sabemo-lo com a noção dessa fatalidade irrevogável. Fomos alguma vez grandes? Inculcam-nos a ideia de que sim. Mas grandes para quem? Fomos nas caravelas, criámos um leito de nações deitando-nos com tudo o que era mulher. Talvez a nossa grandeza resida aí: no gosto e no apreço pela mulher.
Tudo o que trouxemos e roubámos foi para os outros. É sempre assim. Jorge Brum do Canto, aquele realizador de cinema de que já ninguém fala, sequer levemente, disse-me, um dia, no Botequim da Natália, que somos o mesquinho na mesquinhez: pequeninos e queremos e gostamos de o ser. Precisamos de ídolos, ídolos?, que completem a nossa incompletude. Agora, neste mesmo instante, é o Cristiano Ronaldo, que se passeia num Lamborghini para satisfazer a nossa inveja. 





Ele é a nossa vingança momentânea, também ela momentânea e precária, enchemos as praças públicas, transferindo para ele as nossas frustrações e as nossas derrotas. Perdemos. Levámos uma cabazada, e o inchaço da pequenina esperança, tudo pequeno sempre muito pequeno, esvaziou-se como um balão. Lá vamos, cantando e rindo, diz o hino mentiroso. Lá vamos.
Depois, esquecemos tudo. Até a miséria esfarrapada do nosso esfarrapado viver. Protestamos sem ira nem cólera. Protestamos com estribilhos e dizeres em cartazes, e vamos à vida que se faz tarde. Somos o Mundial! Gritam as televisões, todas as televisões, durante todo o dia, e enviados especiais embevecidos, comentadores severos, especialistas engravatados e graves ensinam-nos as razões por que perdemos. Lá vamos, cantando e rindo. Dizia o O"Neill: "Às duas por três nascemos/ às duas por três morremos/ e a vida?, não a vivemos." O O"Neill é como o Pessoa: serve para explicar o aparentemente inexplicável. Lemos os jornais, os que lêem, claro!, e o fastio é tanto que só sabemos de futebol: decoramos os nomes, os lances e as jogadas, nada de mais nada. Somos assustadoramente ignorantes, iletrados contundentes, fecham-se escolas, reduz-se o dinheiro para o ensino, os miúdos vão para as aulas em jejum, e temos, temos é como quem diz..., três jornais diários consagrados ao futebol, fora o que escorre, uma multidão de programas de, sobre e com futebol e adjacências; o mesquinho na mesquinhez elevado ao quadrado. 
"Se fosses só três sílabas, Portugal..." 

(publicado em várias redes sociais).

1 comentário:

Anónimo disse...

Baptista Bastos, termina citando Alexandre O´Neill em "Remorso De Todos Nós"

Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para ó meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...