Por: José João Pais |
Com este texto pretendo comemorar o 99º aniversário da
criação do concelho de Alpiarça que ocorre a 2 de Abril. Faço-o com um
pequeno extrato retirado de um livro que ando a terminar e que gostaria
muito de apresentar no próximo ano, quando o nosso concelho comemorar
100 anos de vida. Assim se conjuguem todas as boas vontades necessárias,
desde logo da Câmara Municipal de Alpiarça. A minha disponibilidade é
total nesta matéria.
Alpiarça, um concelho da República.
O
caminho de Alpiarça, enquanto concelho, fez-se no século XX. Foi, no
entanto, um caminho difícil, polémico, diremos mesmo, sinuoso. Muitos
parlamentares contra, muitos outros a favor. Política intensa nos
corredores parlamentares. Arregimentam-se solidariedades políticas.
Chamam-se para o debate figuras cimeiras da República. Não foi, de
facto, um percurso fácil para se chegar a 2 de Abril de 1914.
De
facto, a partir de 1832, com a reforma administrativa preconizada por
Mouzinho da Silveira e seguida, entre outros, por Passos Manuel, a
regra foi a redução de concelhos e não o seu aumento. Em 1836, por via
da extinção dos forais, os concelhos são reduzidos de 817 para 351 e, em
1910, esse número rondaria os 270 (CD. 9.2.14, p. 9). Os pequenos
concelhos, incapazes de se governarem por si próprios, foram sendo
extintos.
Até aos
finais da primeira década do século XX essa ideia manteve-se. De facto,
entre 1837 e 1910 menos de meia dúzia de freguesias obtiveram autonomia
administrativa. E no período que vai de 1910 e 1914 só a Nazaré o
conseguira. Em causa estava apenas de mudança do nome do concelho, de
Pederneira passou a Nazaré. À política que vinha a ser
seguida de não estimular a criação de novos concelhos, acrescentava-se,
em 1914, o facto de estar em discussão um novo código administrativo. Entre
os artigos já votados na comissão do Senado estabelecia-se um mínimo de
10.000 habitantes para a formação de um concelho, mas na comissão da
Câmara de Deputados esse número descia para 4.000 habitantes. O consenso
ainda não existia nesta matéria. Alpiarça tinha então 6.600 habitantes,
o que, a ser aprovada a proposta do Senado, impedia o seu desejo de ser
concelho. Por outro lado, o acréscimo de despesas, que
naturalmente a criação de um concelho teria, era proibido pela chamada
lei-travão de 15 de Março de 1913, que impedia aumento de despesa além
do que estava em Orçamento Geral do Estado. Por causa desta lei muitas
freguesias tinham visto as suas pretensões rejeitadas. O cenário não era, pois, animador para as pretensões alpiarcenses. Mas para os promotores do novo concelho não havia obstáculos intransponíveis. O projecto vai mesmo em frente.
A
primeira etapa está reservada para a Câmara de Deputados a quem
competia as iniciativas legislativas de maior relevância. Assim, na
sessão de 12 de Janeiro de 1914 é apresentado um projecto de lei
assinado por Queiroz Vaz Guedes e Francisco José Pereira “para que a freguesia de Alpiarça seja desanexada do concelho de Almeirim e constitua um novo concelho”.
Fundamenta-se o pedido em razões de justiça e de aspirações do povo de
Alpiarça, bem como na sua capacidade de gerar receitas para manter o
novo concelho (S. 12.01.14, p.13).
Quanto
aos proponentes, assinalemos que o Dr. Queiroz Vaz Guedes exercia nesta
altura o cargo de Governador Civil de Viseu (terra natal da esposa de
José Relvas) e era deputado pelo círculo de Pinhel (Marques, 2000, p.
241). Francisco José Pereira, natural do Cartaxo, povoação vizinha de
Alpiarça, era deputado por Santarém. (Marques, 2000, p. 341).
Acompanhava José Relvas desde os tempos da propaganda republicana.
O tiro de partida estava dado. A batalha verbal iria começar.
Tasso
de Figueiredo é, no Senado, o rosto mais visível da contestação à
proposta. O seu discurso é bastante crítico a este tipo de solicitações
de natureza administrativa que aparecem avulso no Senado: “Eu
sou inimigo intransigente dos pequenos concelhos e a razão é por que a
pulverização dos concelhos traz consigo aumento de despesa e, por
consequência um agravo ao contribuinte. Seria melhor esperarmos pela
promulgação de novo Código Administrativo para sabermos como devemos
proceder em assuntos desta ordem”. No seu entender, esta divisão de concelhos “obedece mais ao capricho de alguns influentes locais do que a qualquer fim útil”
(S. 22.1.14, p.15). Sustenta a sua tese apontando para o caso de
idêntico pedido feito pela freguesia do Bombarral, que já vinha de 1912,
e que foi rejeitado por estar incurso na chamada lei-travão. João de
Freitas confirma essa situação baseado na opinião do Ministro das
Finanças que lhe dissera, que “não podia deixar
de reconhecer que a criação do novo concelho importava aumento de
despesas, porque era necessário nomear um tesoureiro de finanças,
fiscais de impostos, criação duma secretaria da Câmara Municipal e ainda
outras despesas” (S. 6.2.14, p.6).
Adiar
passava a ser agora a palavra de ordem dos que se opunham à proposta de
Alpiarça. Sousa Câmara propõe a 6 de Fevereiro que se vote o adiamento,
pois “é conveniente esperar pelo Código Administrativo. Desta forma não se pode estar a fazer um trabalho consciencioso”, posição que é aplaudida por Ladislau Piçarra, “só
depois de haver uma lei a regular a descentralização administrativa… é
que as freguesias deverão requerer as suas desanexações” (S. 6.2.14, p.5).
No
Senado, é José Pádua quem dá a cara em defesa das aspirações dos
alpiarcenses. O médico algarvio, também músico distinto, é filiado no
Partido Republicano desde 1903 (Marques, 2000, p.334). Na sessão de 22
de Janeiro diz que irá defender este projecto como o faria com qualquer
outro. No entanto sempre acrescenta que, embora rejeite votações por
afinidades políticas, “nós devíamos ter uma certa
simpatia pelo concelho que foi sempre baluarte da República, e nestas
condições eu dou o meu voto ao projecto” (S. 6.2.14,
pp.4-5). É, assumidamente, um voto político. Daniel Rodrigues, um
magistrado filiado no Partido Republicano (Marques, 2000, p.377), junta a
sua voz aos defensores da causa alpiarcense.
Mas
a criação do concelho de Alpiarça parece estar ameaçada. Não há
certezas quanto à sua aprovação. Opositores e defensores parecem ser em
número muito igual.
Paira no ar a
sensação de que se prepara o adiamento sine-die da votação, ou mesmo de
rejeição, como acontecera com Bombarral. As “tropas” de Alpiarça tocam a
reunir e resolvem chamar os “Generais” para assumir a condução da
“batalha”, sob risco de se perder definitivamente a guerra. Era
necessário exercer uma pressão mais activa sobre os senadores. Na manhã
de 9 de Fevereiro chega à mesa um telegrama enviado pela Junta de
Paróquia de Alpiarça a pedir a votação imediata do projecto e rejeitando
qualquer adiamento. Preparava-se o cenário para o assalto final. Um
observador atento notará, então, a presença de um Senador que há quase 3
anos ali não era visto. Era José Relvas. Tinha sido eleito em 1911, mas
suspendera o mandato para ser Embaixador em Espanha. Estava prestes
dirigir-se à assembleia. Havia que garantir o bom fim da proposta de
Alpiarça, pois nesse dia seria posto à votação o seu adiamento.
A
credibilidade de Relvas era evidente. Na sua folha de serviço constavam
grandes serviços prestados à República. Não admira que tenha sido
chamado a intervir neste momento delicado para Alpiarça. A sua
intervenção era aguardada com expectativa.
Esta
presença apanha quase todos de surpresa. O próprio José Relvas não
pensaria, dias antes, nessa possibilidade. De facto, nem estava inscrito
para falar. Tem que pedir autorização à Camara para defender a proposta
no período de antes da ordem do dia. Começa, então, por referir que a
sua presença se destina a esclarecer os senadores antes de ser votado o
adiamento. Realça o republicanismo da terra e acentua a viabilidade
económica do projecto. Salientará que, “por agora basta
dizer que os recursos financeiros do novo município são suficientes para
a sua vida autónoma, que tem os elementos necessários para se
administrar, população suficiente para justificar a sua existência
independente, nem sequer lhe faltando o edifício para sede de todas as
repartições municipais e do Estado...”.
Depois
desta intervenção passou-se imediatamente à votação da proposta de
adiamento. Esta é rejeitada por 26 senadores, contra 22 que votaram a
favor. De seguida, procede-se à votação, na generalidade, da proposta de
lei, que também é aprovada. Respira-se de alívio nas hostes
alpiarcenses. O esforço final resultara em pleno. O que viesse a seguir
já não poria em causa o essencial, e o essencial era a criação do
concelho de Alpiarça.
A
discussão na especialidade é o passo seguinte. Procede-se à análise
artigo por artigo. A discussão volta a ser inflamada. Os opositores não
desarmam sobretudo no que se refere à capacidade financeira e ao aumento
de despesas para o estado que a criação do novo concelho iria implicar.
No entanto, os defensores da proposta alpiarcense não se desunem e
vencem todas as votações. Depois de muitos avanços e recuos, a vitória
final. A 2 de Abril de 1914, o Diário do Governo publica a Lei n.º 129,
cujo artigo 1.º refere que “a freguesia de Alpiarça é
desanexada do concelho de Almeirim, para ficar constituindo um concelho
autónomo, com sede na vila da respectiva freguesia”.
A
votação favorável à criação do concelho de Alpiarça deu brado. Foi o
momento decisivo que “obrigou” os deputados a reverem posições
anteriores. Agora, em coerência com aquela decisão, “terão” que permitir
a constituição de outros. Todas as velhas aspirações foram
desenterradas e descongeladas a 2 de Abril. Novas unidades
administrativas brotam então instantaneamente, como semente lançada à
terra em dia favorável. Com efeito, no mês de Maio conseguem atingir os
seus objectivos, a Ribeira Brava a 6, Alcanena a 8 e Sines a 19; no mês
seguinte vêm, Sº. Brás de Alportel a 1, Castanheira de Pêra a 17 e
Bombarral a 29. Tinha razão o Senador Tasso de Figueiredo ao dizer na sessão de 5 de Março de 1914, quando já se vislumbram no horizonte novas propostas, “realiza-se o que profetizei. Criado um concelho, temos de votar todos os dias a criação de novos concelhos” (S. 5.3.14, p.14). João de Meneses também já adivinhava situações deste género, “daqui a pouco há um concelho em cada rua!” (CD. 15.1.14, p.4).
Ladislau Parreira, por seu lado, ao discursar no Senado em 9 de Junho
de 1914, penitencia-se do que considera ter sido um erro de Senadores e
Deputados, ao permitirem a criação de novos concelhos. Estava-se “a
dar ao país a impressão de que toda e qualquer freguesia, sob qualquer
pretexto, se podiam desanexar dos concelhos a que estava ligada até
aqui”. Mas estes lamentos já não poderiam alterar a marcha
dos acontecimentos. Alpiarça era concelho. A voz de José Relvas foi
determinante.
Siglas utilizadas: S=Senado; CD=Câmara de Deputados
Parabéns José João Pais e obrigado por mais este contributo em prol da nossa cultura histórica local.
ResponderEliminarO ano que vem, lá estaremos para o lançamento de mais um trabalho que nos deve orgulhar a todos.
"Cada um vale pelo que faz e não por aquilo que diz fazer."