terça-feira, 9 de outubro de 2012

Fragmentos da nossa História

Por: José João Pais
                 Fragmentos da nossa História - Parte 1
1950 – Ano da morte de Alfredo Lima e de Manuel Vital


O ano de 1950 é para mim um ano histórico. Alpiarça esteve a ferro e fogo durante o mês de Maio. Manifestações e confrontos violentos na praça de jorna levaram á prisão de muitos alpiarcenses e à morte de Alfredo Lima. Por outro lado, em Novembro, aparece um cadáver na zona de Alcochete, que se vem a descobrir ser de outro alpiarcense que havia dedicado parte da sua vida, grande parte dela na clandestinidade, à actividade politica – Manuel Vital. Em 1950, no mês de Outubro, foi também o ano do meu começo como ser vivo. Morte e vida, é o círculo incontornável da humanidade. Mas não é de mim que vou falar. Irei, sim, abordar acontecimentos muito mais interessantes para os leitores, nomeadamente os que levaram à morte primeiro de Alfredo Lima e, posteriormente, de Manuel Vital. São, de facto, assuntos palpitantes, pouco conhecidos e que podem motivar a curiosidade geral. São fragmentos da História de Alpiarça. Comecemos por perceber como é que Alfredo Lima morreu.
À entrada na segunda metade do século havia uma sensação de esperança em toda a Europa e em Portugal também. Acabara a 2ª Guerra Mundial e era expectável uma época de paz. O Plano Marshall ia ajudar a reconstruir a Europa destruída. Começava a pensar-se numa Europa mais unida que afastasse de vez qualquer hipótese de nova guerra. Portugal ficara afastado da catástrofe que assolara o mundo, jogando, até muito tarde em dois tabuleiros, mas na reta final, posicionámo-nos ao lado dos vencedores. Em 1949 tivemos eleições para Presidente da República com dois Generais como protagonistas, Carmona, próximo de Salazar e Norton de Matos pela Oposição. Houve uma campanha aguerrida, nomeadamente em Alpiarça, em que foi visível o apoio a Norton de Matos, com uma comissão de candidatura onde se destacavam, entre outros, João Gaspar, António Barata Fragoso e Carlos Pinhão.
Nos campos do Ribatejo a situação dos trabalhadores agrícolas mantinha-se precária. É convicção geral que só com muita pressão na Praça Velha, onde se discutiam as jornas, se conseguiriam pequenos passos para melhorar as condições de vida e a retribuição semanal. Mas a praça de jorna não se realizava já há bastante tempo. Isso era um grande obstáculo para se concertar posições. Discutir formas de luta era o que estava no centro das conversas entre trabalhadores nos primeiros meses de 1950. As reuniões intensificavam-se. Chega-se a avançar com uma data precisa para se realizar uma greve – 28 de Maio. Esta data acaba por sofrer um duro golpe pois a PIDE consegue aperceber-se das movimentações e deter algumas pessoas que suspeitavam estarem na base das mesmas. São então presos os seguintes trabalhadores rurais tidos como “cabecilhas”: Gabriel Feijão Coelho, preso a 1 de Abril e libertado a 23 de Outubro, tal como Abel Favas Paúl, mas este fica mais um mês na prisão; Celestino Alcobia Marques, detido a 27 de Abril e libertado a 15 de Junho; António Batata Marto detido a 27 de Abril e solto a 19 de Outubro; Celestino da Costa Tendeiro “o Freilão”, preso a 22 de Abril e libertado a 23 de Novembro; António Cavaca Calarrão, preso a 21 de Maio, tal como Joaquim Agostinho Marujo e Leocádio Teodoro do Vale, mas este, tendo sido detido a 19 de Março, só é libertado a 15 de Novembro de 1952. São todos acusados de pertencerem ao Partido Comunista. Foi de facto um duro golpe que a PIDE conseguiu infligir aos ativistas políticos alpiarcenses. As lutas que se desenhavam e discutiam nas reuniões pareciam, assim, comprometidas. Aparentemente os trabalhadores ficavam sem o seu grupo orientador. Mas se a polícia política julgava que as reivindicações acabariam por ali, enganou-se nos cálculos. De facto, mantém-se, ou aumenta até, a atitude reivindicativa por melhores salários junto dos diversos ranchos. Pede-se um aumento de 20 para 30$00 para os homens e defende-se a jorna de 15$00 para as mulheres que, tradicionalmente, ganhavam metade dos homens. E são, na realidade, as mulheres que defendem com maior determinação os seus objectivos. Clarisse Tacão, Felismina da Conceição Figueiredo “Sapateira” e Lucinda Samarra parecem assumir a liderança da contestação feminina. Não era uma situação habitual entre a classe feminina, já que os homens lideravam normalmente estas movimentações. Mas nesta altura são elas que assumem um protagonismo maior e combinam uma acção conjunta com os homens para o dia 4 de Junho de 1950. Local de encontro Praça Velha. Hora marcada, 8 da noite.
No dia e na hora combinada assiste-se a uma enorme movimentação de homens em direcção à Praça Velha. As mulheres, por sua vez, têm como lugar de concentração a Rua da Junta, por detrás da igreja, ao lado da oficina do Rabico e a escassos 50 metros do local onde os homens se juntam. Há 3 anos que a praça de jorna não reunia para proceder ao aumento de jornas. Ninguém pode prever o que irá a acontecer e qual será o comportamento dos capatazes e dos trabalhadores quando chegar à altura de discutir o valor das jornas. Nota-se, por isso, uma inusitada ansiedade em cada rosto. A tensão sobe á medida que a multidão engrossa em toda a área envolvente à Praça.
Vamos então assistir ao que se passou em Alpiarça naquele fim de tarde, princípio de noite, do dia 4 de junho de 1950. Demos a voz aos que estiveram no local e foram elementos ativos nos acontecimentos. Autoridades, manifestantes, simples observadores, darão o seu ponto de vista daquilo que observaram. São testemunhas dos acontecimentos. Por isso, ninguém melhor que eles para nos contarem, à sua maneira é certo, aquilo que se passou. Do confronto do que cada um disse, poderemos tirar as nossas conclusões.
Comecemos pelas autoridades policiais e pelo relatório elaborado pelo Inspetor José Aurélio Boim Falcão, pelo Chefe de Brigada Manuel Luís Macedo Farinha dos Santos e pelo Tenente da GNR, Joaquim José Carreira, comandante da secção enviada para Alpiarça durante estas movimentações. Diz assim: “Deu origem aos incidentes, segundo apurado até agora, o pedido de aumento de salários apresentados pelos rurais, homens e mulheres, na Praça dos Trabalhadores realizada em Alpiarça dia 4 do corrente mês. Ganhavam os homens e mulheres até essa data, respetivamente 20 e 10 escudos, mas nesse dia foi apresentado aos capatazes encarregados de contratar pessoal o pedido de aumentos de salários, não se dispondo os homens a trabalhar por menos de 30$00 e as mulheres por 15$00.
Dessa reclamação, não aceite pelos capatazes, nasceu um alarido mais intenso entre as mulheres, que originou a intervenção da patrulha da GNR encarregue de manter a ordem na rua. Esclareça-se, que a intervenção da patrulha se deu por aviso de uma mulher, Prazeres da Conceição Franco, que informou os soldados do referido alarido, muito embora não tivesse a ver com eles por não ser trabalhadora.
Quando as praças se dirigiram ao grupo formado pelas mulheres, viram-se subitamente rodeados por cerca de 3 centenas de homens, que, em atitudes ameaçadoras, pretendiam entravar-lhes a acção, gritando que o que eles queriam era mais dinheiro e que a GNR nada tinha a ver com o assunto.
Como o grupo aumentasse a todo o momento, tendo sido proferidas frases exaltadas, como “fora, fora” e “vamos a eles”, e como alguns trabalhadores procurassem desarmar os dois soldados, estes dispararam vários tiros para o ar. Talvez porque os tiros foram para o ar e confiados no número, os trabalhadores insistiram nos impropérios, passando a certa altura a apedrejar os soldados. Prudentemente, estes ainda voltaram a disparar as suas armas para o ar e só quando o insulto atingiu maiores proporções e as pedras choviam de todos os lados é que eles se resolveram a fazer alguns tiros para as paredes frontal e lateral esquerda da rua onde se achavam aglomerados os trabalhadores que entretanto haviam recuado perante a ameaça dos disparos.
Para se ajuizar se houve ou não a maior prudência da parte dos soldados, basta que se diga que dos cerca de 20 tiros disparados, foram apenas atingidos 4 dos díscolos (desordeiros), um dos quais veio a falecer na 2ª Feira, dia 5, no Hospital de Santarém, para onde foi conduzido pelo próprio comandante do Posto de Alpiarça, 2º Sargento Francisco Pires. Tanto o falecido como os feridos foram atingidos pelos estilhaços produzidos pelo ricochete das balas que bateram nas paredes e não pelos tiros diretos, o que se sabe ser verdade, pois é o que consta de todos os exames médicos feitos aos feridos e da autópsia feita ao falecido. Ainda em abono da patrulha, que se portou valentemente, manda a verdade que se diga, que os tiros feitos para as paredes foram-no depois dos soldados já estarem feridos pelas pedras arremessadas contra eles.
Serenados um pouco mais os ânimos com a chegada de 3 praças que se encontravam de serviço no cinema local, foi dispersa a multidão, encerradas as tabernas, restabelecendo a GNR a ordem e tendo o Posto, mais tarde, sido reforçado com soldados vindos de Santarém sob o comando do tenente Carreira.
Foram detidos por fazerem parte da agressão á patrulha:
Joaquim Rosa do Norte, “o Gino”, Flausino Abalada Fernandes, José da Conceição Bernardo “o Cabano”, Joaquim Maria Pedrosa, Alberto Céu Pinto “o Parente”, Diamantino Conceição Bernardo “o Cabano”, Joaquim da Conceição Elias “o Serrador”, Rui Freitas Margaça, António Malaquias Abalada “o Borlota”, Júlio Agostinho Marques “o Porqueiro”, António Caetano Quartilho “o Besuntado”, Raúl Alcobia Belindorro, António Ilídio Bento lima, Joaquim Claudino dos Santos “o Joaquim Rabicha”, José Augusto Pinto “o Isaías”. Sendo ainda apresentadas como supostas instigadoras do conflito acima referido, ou nos acontecimentos precedentes que com eles se relacionaram: Clarisse Tacão, Felismina da Conceição Figueiredo “Sapateira” e Lucinda Samarra. São portanto 15 homens e 3 mulheres detidas nos dias 12 e 13 e conduzidas para as prisões desta polícia na madrugada de 14. Acabam por também ser detidos mais tarde, a 20 de Junho na zona da Azambuja, Júlio Farroupo Lagarto que se ausentara de Alpiarça durante a noite, acabou por escapar à prisão. Outras detenções mais tardias são as de Joaquim Fernandes d’Avó “Joaquim Courela” e Manuel Conceição Elias “Manuel Serrador”, também conhecido por “Manuel Isabelinha”, que só vem a ser detido no dia 29 de Julho na Quinta da Gouxa.
Refira-se que os feridos não foram detidos por se encontrarem, um internado e outro, Angelino Arraiolos, com alguns dias de incapacidade dada pelo médico que o está a tratar.
Os feridos tratados pelos médicos Dr. Mário Restani Romão e Dr. Mário Zuniga, chamados ao Posto, foram os dois guardas com feridas nas mãos e que se queixavam de fortes dores na espinha dorsal, lesões provocadas, segundo os médicos por “instrumentos contundentes”; o Angelino Arraiolos, que foi ferido por ricochete de projétil; Raúl Farroupo Casaca e Manuel Piscalho da Silva, que apresentavam também alguns ferimentos”.

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